Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O Toque

Gosto quando descobrem a beleza flutuante e inerte no escuro, que paira sempre detrás das placas ou olhos,
Quando gritam só dentro e é necessária, antes da inteligência, a sensibilidade - calar para criar voz,
Ou quando apenas são tocados sem explicar, e sou eu também, como todas as andorinhas.
As marcas que pelejam em permanecer, a retina que cega de luz, todos inevitáveis
[se você deixar-se alcançar. E é por isso que eu te conto um segredo:
O amor, entre o espinho e o cravo, é apenas instrumento,
Vai fluindo e escapando para as terras-do-nunca.
Aquilo palpável é só flor e cruz de cobre
Mas o céu está sobre as cabeças
Como a coroa de rosas
[que não tange.
E existe.
Sim.

Mariane Cardoso

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Lodo

     "Março", ele me fala dentro do ouvido, mas sendo um pouco menos gentil ou pacífico do que o começo. Impaciente, dizendo por trás do som - e eu percebo isso nos olhos - um não tenho saco pra mais nada. E eu também, que passo o dia inteiro com a preguiça ou tédio, confesso calada que não tenho. Suspiro antes e ele desce o rosto pelo meu pescoço, meus ombros, braços e fica quieto na minha barriga. A casa é abafada e solto um "por que março, amor?", mas sai mais desleixado do que eu gostaria, sem coragem ou realmente sentimento contido em cada pausa. Só então percebo que ele já dormiu com a cabeça em minhas costelas, que a gente não fez nada o dia inteiro e que continuaremos sem fazer nada, inclusive sem resposta, ou sem futuro, um final típico da tal promessa de dedo cruzado.

     Tem que ter algum sentido nisso tudo, não é possível. Aí ele suspira perto do meu umbigo perdido em sonhos, e eu sou só uma mulher desacostumada. A sua mulher desacostumada. Tem que ter algum sentido nesse sofá que não ficou disposto em Feng Shui garantindo qualquer harmonia na casa, tem que ter razão para março, abril, dia das rosas ou cidade de Roma. Para todas essas coisas que ele sussurra no meu ouvido antes de dormir e que eu nunca tenho saco para recapitular ou descobrir sozinha o porquê. Eu nunca descubro sozinha, entende? Enquanto a tarde é morna e rígida e sufocante de vazio, ele ainda consegue dormir. E eu não tenho ânimo de ser sozinha.

     Mas ele sabe que em março o último botão da roseira da varanda morreu por falta de água, porque a culpa é dele e do sol, e que ambos só estavam fazendo o próprio papel. Eu que não quero descobrir, e não descubro porque não quero. Por isso fico nessa de respirar com cuidado para não acordá-lo. Só que dói demais, pois demora crepuscular. Dá para ficar horas e horas encarando a janela e não chega a hora de dormir nunca. Mas a culpa é minha também, porque nenhuma vez li para ele aquele do Vladimir, sobre o elevador que não parava jamais de descer, não parava nem que fosse no inferno, e essas coisas foram feitas assim sem intenção. Jamais recitei para ele um poema sobre estática, se é que existe. Era isso que eu precisava descobrir para ensinar a ele. No final das contas, eu também perco os fios e começo a tossir de propósito, porque sinto que ficar sozinha pode ser mais perigoso do que o próprio perigo. Ele desperta e finge que me entende, mas eu sussurro muito baixo um "por que é que você não faz amor comigo do mesmo jeito?" e ele fica sem entender, solta um "quê que 'cê falou, meu bem?" e eu apenas digo que não sei, ainda preciso descobrir. Que somos mutáveis e março não muda. As perdas não saem do mesmo jeito. Só me interrompo por um beijo que ele me dá ainda com preguiça e ainda se esticando sobre meu corpo. Mas feitiço de amor não funciona para desinteressados.

     Peço para ele não dormir de novo, daqui a pouco já é noite e eu tenho medo de ter medo. De conseguir minhas desilusões sozinha. Não, eu preciso da sua vigília, meu amor. "A gente precisa ter fé em alguma coisa". Daí ele troca de lugar comigo e fica com as costas de suor coladas ao tecido do sofá velho, me deita por cima e balança devagar enquanto ainda tenta lembrar como é que se canta uma cantiga de ninar. E tenta de tudo como se eu fosse um bebê, como se fosse dar certo. Mas dorme antes de mim. E eu só consigo repetir internamente que a gente precisa ter fé em alguma coisa. Que no próximo março existirá fênix em forma de flor. Ou que vai ser mais fácil cair o sol. Ou que, na realidade, vamos cair em nós mesmos e arrumar os móveis do jeito certo. E que vamos ser finalmente certos, talvez nem precisemos de poema de estática, nem eu precise descobrir sozinha. E é assim que, aleluia, eu começo a acreditar que o lodo vai indo embora. Desse jeito. O lodo vai escorrendo, embora denso. O lodo vai migrando na mesma inconstância, a passo de serpente. Mas a gente, definitivamente, precisa ter fé.

Mariane Cardoso

domingo, 27 de novembro de 2011

"Uma pessoa normal"


     Meu nome é Narciso.
     A minha vida, assim, eu sinto como se ela... Na verdade, não sinto nem como se ela fosse. Eu sinto uma sensação muito forte, uma energia dentro de mim, dentro do meu espírito, uma coisa expressiva, como se eu vivesse, na verdade, uma promessa de dedo cruzado. O que é que seria a promessa de dedo cruzado? Ela seria alguma coisa que parece que tá acontecendo, mas nunca acontece, que tá pronta pra ser concebida, mas não é concebida. E, ao mesmo tempo, uma coisa que você prova só pra você mesmo. Pros outros, ela tem uma sinceridade. Mas não tem pra você.
     Dizem que a solidão enlouquece. Mas a sua sanidade, na verdade, só vai estar em jogo a partir do momento em que você não é mais sozinho.
     Eu sou uma pessoa normal.
     A solidão não passa de uma sobreposição de todas as suas camadas num único momento. Todas as suas camadas, assim, todas as suas vontades, todas as suas verdades, elas se encaixam num único espaço de tempo. E aí, você realmente enxerga que você nasceu. Que desde que você nasceu você é solitário.

Trechos do curta-metragem de Ciro MacCord, Solidão

sábado, 26 de novembro de 2011

Travessão e Boca Livre

     Eu já tive essa conversa com você, P., embora muita coisa tenha mudado. Fiquei guardando para te contar: considero que ando mais autossuficiente. Afinal, independência foi o que eu sempre quis, não foi? Mas ainda falta muito. Falta muito mesmo. Esses patamares a gente alcança engatinhando, e eu falo, porque tenho que me aceitar sendo aos poucos. As pessoas precisam entender que a solidão é pré-requisito para o crescimento. A gente tem que entrar em contato com o fundo do poço, ir sem medo, com a certeza também de que ninguém estará lá em cima pronto para nos puxar para fora. É um processo de terror. Tem que ser. A gente precisa aprender a ter coragem sozinha. Se procura ir além, P., não pode esperar que eles estejam antes de você na linha de chegada.

     Eu já passei da fase em que precisava comprar e vender imagem. Porque tudo é um grande comércio, você sabe. E ninguém ganha nada sem dar algo em troca. Eu cansei, P. A única vontade que eu pedi para se realizar de dedos cruzados foi a de ser autêntica. A de ser apenas a mesma de antes, a que escrevia para jogar fora depois. Porque palavra não é para ser guardada em coleção. Palavra parada na estante empoeirada é de provocar o choro, mas o choro de nojo, e não o choro que eu quero provocar - aquele de autoconhecimento. Ou destrói ou não destrói, mas manter no padrão, isso não. É necessário praticar o desapego material. E não dá enquanto muita gente está de olho, sempre querendo me controlar, compreende?

     Eles gostam
     quando eu sou constante.
     Mas eu
     não sou.

     A escritora também decide não tomar café-da-manhã quando o sono passa das 11a.m., e tira um cochilo no sofá enquanto deveria estar acabando de estudar a matéria. Eu também me atraso. Eu não sei, P., o que eles querem cobrar. A cidade em que eu moro tem esgotos a céu aberto. Não conheço ninguém do condomínio, só a minha vizinha de porta. Quando eu vim para cá, pensei que perderia todos os antigos laços. E, de fato, só me restaram quatro (sendo que dois são da família). Então, P., eu não tenho tempo para obedecer, a não ser minha própria consciência. E eu sei muito bem sobre mim. Mais do que as pessoas normalmente sabem sobre si mesmas. Eu vou carregar esse peso sem abaixar minha cabeça. E sem dar motivos. É uma merda isso tudo. Eu já faço sozinha, não há necessidade de plantões. A observação não altera a essência da coisa, se é que me entende.

     E espero que você saiba que eu sou madura o suficiente para estar do lado do travessão, e não da boca livre. Existe uma enorme diferença entre o que passa pela cabeça e o que passa pela boca. Nem metade precisa se chocar com o mundo. Há objetivos, P., ou o que eu chamo de persuasividade. Pelo menos eu acredito que haja, na maioria dos casos. Prefiro continuar na esperança de que nem todos se renderam às banalidades. E eu, pura e intuitivamente, sou o travessão. Não fico no meio da praça, só me nota quem pula a linha. E é preciso estar forte. Como quando se joga em um precipício.

     Aprenda, P.
     Nós cantamos
     a canção dos inconvenientes
     e o badalo
     dos sem ritmos.
     Nunca é o batuque em si,
     mas o silêncio
     entre um e outro
     que fica subentendido.
     É necessário que estejamos
     livres
     até quando nos predispomos
     a definhar.

Mariane Cardoso

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


-

     Amor, agora eu tenho medo de falar seu nome em voz alta e faço promessas para guardar segredos que nem existem, que se contam sozinhos, sem que minhas palavras precisem sair. Eu sou uma mentira que você não quer entender. (...) Uma perturbação no chão em que você pisa. Eu só sei ser triste, eu só sei ser sozinha. E eu não vou entregar tudo a você. Eu quero minhas dores só para mim, me desculpe. Quero minhas desilusões e minhas sentenças loucas.
     Eu quero ser quente sempre, mas não consigo permanecer alegre e inteira. Porque eu sou só pedaços. Porque eu sou só resquícios.
     Que seja sempre muito delicado esse seu impulso de sobrevivência.
     Uso agora as palavras do mestre Buarque: “eu vou rasgar meu coração pra costurar o teu”. Passar bem.


Mariane Cardoso em "De Ninguém"

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Amor É Suicídio Maior

     Principalmente quando há uma valsa no lugar do coração. Daquelas prolongadas, de espalhar pelo salão inteiro, de secar a boca. Daquelas valsas em que a gente esquece da meia-noite, que duram, impregnadas do chão aos fios de cabelo dos que fraquejam, feito eu. Mas não me lastimo tanto, pois nem mesmo o sono escapa de ser roubado. E o dia se atrasa porque a resposta tem que ser dada, porque não existe sobra de amor, porque até as aves despertando querem tecer música acima da minha casa. Até a consciência fica um pouco de lado. A essência do ambiente não lembra como antes roupas velhas, paredes de pó e um vazio habitacional bem no centro do meu quarto. A essência agora lembra o espiral da sua língua subindo pelo meu pescoço. E só. Amor é suicídio-mor. Eis aqui a renúncia lírica de uma carta de alforria.

     É o documento oficial que os esquecidos, os da margem, os de espírito transcendente, os irrecuperáveis e os misteriosos assinaram. E eu, na condição de alvo, também assino. Não queremos mais a carta. Se existisse flecha, a ponta certamente seria venenosa. Eu, na condição de mulher do coração de voos rasantes, vou aprendendo a me render aos mergulhos num caminho sem volta e - sim, Senhor - sem fim. É também a pressão que vai sufocando meus pulmões em todos os sentidos. Começa na palma da sua mão, enquanto você insiste em decorar minhas curvas e meus defeitos de simetria espalhados por coxas, quadril e cintura, e termina no efeito psicológico de que somos escravos e de que não precisamos - de que nunca precisamos, na verdade - da liberdade, querer inventar histórias com mais doze pessoas ou cansar de uma saliva só que percorre o corpo. Termina no efeito que parece cobrar logo o nosso final, sempre mais rápido. Na sensação de que estamos com o dever cumprido pelo simples fato de perceber arder o coração. E, pela linha normal de ser humano, latejar o pensamento de que é tolice, que é efemeridade ou poesia demais para uma vida que é real, que é passível de explicações quânticas enquanto eu, aqui, não explico nem metade do que é paixão. Mas tenho certeza absoluta: morrer de amor existe. E o que choca mais é que talvez seja necessário. Mesmo que ninguém descubra.

     O meu único desejo profundo nesta noite, embora eu pareça segura (ou conformada), é de que a minha revelação te traga alguma agonia. Um lampejo, mas gigante, que estrague tudo. Que todos nos estraguemos por completo. Eu juro que cada palavra tem vontade de soar como um sino de enterro. Cada eu-te-amo, precisamente, é uma badalada. Do nosso próprio enterro. O caixão vai sendo comprado a prestação, vamos pagando com os arrepios na nuca. Os espelhos e eu podemos combinar a cor do vestido, branco, e a coroa de flores mortas na cabeça. Tão mortas quanto o rosto. Só não maiores que nós, no campo de visão da flecha. Pois amor é suicídio maior. E até a valsa desiste de ser progressiva, harmoniosa e complacente com os pares da dança. Vamos nos estragando todos, por amor. Virando a iminência de tocar o piano, mas tão fundo, tão mergulhado, tão pressionado e impregnado nos pulmões que só existe a morte. O incurável e magnífico ápice da vida.


Mariane Cardoso     

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Pequena observação

     O maior acidente é não acontecer. Antes mesmo de todos os textos ou silêncios em noites desesperadas. Antes mesmo da angústia que fica porque somos ainda pessoas menores. É não saber dizer antes de quê. Eu insisto na intensidade, pois em alguma hora tem que bastar. O maior problema é quando não acontece. E é cinquenta por cento de sim e de não. Você pode ficar me olhando a tarde inteira sem um beijo. Pode ficar deitado a madrugada inteira sem um sonho. O verão inteiro sem cumprimentar a luz. A rua inteira sem esquinas. A vida inteira sem amor. Tudo contido numa mísera porcentagem.
     O maior problema é esse cinquenta por cento de não.
     Faça-me o favor.
     Aconteça.

Mariane Cardoso

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Copihues

Aos ramos, despencam da sacada como lágrimas,
olham a despedida que seus lábios fazem
enquanto eu peço um último beijo - por favor
para estancar a saudade que chega antes do fim
e a ferida no peito que deixa o sinal. Vermelho.

Te juro mais um ramalhete antes que parta,
antes que dispare contra o tempo,
antes que pare com as batidas do seu coração.
É minha lágrima correndo que nos dá o passaporte,
entre o castelo e o abismo, para além da morte.

O vento não me entrega a sua carta por condenação
e por pura proibição é que eu me perco
em sua estampa verde, seus cachos fantasiosos
e seu peito delírio que é também martírio.
Que é onde eu morro dentro do seu grito.

Mas os Copihues serão seus quando voltar
e essa é a nossa cama arrumada, para chorar.
Os Copihues serão descobertos junto ao resto,
pois o café dos olhos acaba na ponta dos dedos,
mas a pólvora nas narinas incendeia o reencontro.


Nosso amor sobreviveu à guerra. Mais forte.
Mariane Cardoso

-

     Eu tenho tanto medo de nós descobrirmos o que não queremos. Tenho tanta convicção de que, um dia, haverá um erro imperdoável. Meu Deus, ajude-nos. Certas coisas devem ser bem guardadas e o nosso problema é sempre o contrário: não falta amor, não falta vida, não falta nada. Isso que incomoda às vezes, essa permanência inacabada, essa junção que tem tudo para ser perfeita e só não é porque inventaram que nada pode ser perfeito.
     (...)
     Existe um tal de conjunto vazio, acho que é dele que fazemos parte. 

Mariane Cardoso em "Algo em nós não se intercala direito"

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

 -

     Levanta, pior: que o pão não é alimento, que o café não é amargo. Sua voz no meu ouvido sem sentido. Quero fazer arte marcial, viagem para Toronto, ingresso para Rita Lee. Vai saber como a gente foge tanto e ainda não consegue sublimar no céu, vai saber. Eu enceno um pouco porque não sou besta, porque não dou trela, porque perco mesmo o meu dia inteiro e você me conhece. Eu vivo triste. Exclusivamente por isso. E me confesso como se estivesse à beira da morte todos os dias.

Mariane Cardoso em "A Pergunta"

domingo, 20 de novembro de 2011

O Milagre de Ressuscitar As Flores

     Eu apenas queria que soubessem, o Igor nunca esteve tão vívido. Se me deixassem fazer sua vontade, o quarto monótono estaria repleto de pequenos frascos de papel, cada um deles de braços abertos para uma flor murchante que o Igor promete trazer e salvar, ressuscitar no último segundo. Eu monto muitos vasinhos com papelão, incansavelmente, mas ainda assim faço a parte mais fácil. É o Igor quem mergulha para trazer a respiração à tona. No entanto, retiram do chão os inúmeros recipientes improvisados que deixo, falam que eu não posso encher o quarto dele de papelão porque é impróprio para um ambiente hospitalar, anti-higiênico e sei lá mais das quantas. E não adianta falar que é o Igor quem quer. Eles acabariam proibindo minhas visitas e eu sou a única que ainda consegue ouví-lo. Só as flores murchantes nos agradecem.

     Ele e eu já tivemos alguém no mundo, mas não agora. Os tempos são outros; os gestos, os milagres são outros; e também serão outros quando ele acordar. Certamente, mais cruéis e descrentes. Tenho medo da reação do Igor, estático no tempo já incerto, acompanhante dos delírios daqueles que nunca tiveram receio de se entregar, mas na década deslocada em que os trabalhadores são pontuais, os relógios são quantizados na Bolsa de Valores e os olhos se voltam para o chão, cansados de olhar o céu. Nunca houve espaço para a nossa poesia, Igor, nunca. E, quando você acordar, será pior. Porque a distância para o solstício de inverno vai ficando mais derretida a cada dia. Os selvagens vão sendo engaiolados e soltos serão apenas os invisíveis. Vai secando o leito em que poderíamos dormir, vai falecendo, putrificando. As flores, antes, tinham até cinco pétalas. Hoje são só três. Eu me sinto impressionantemente sozinha com o seu silêncio, o corpo me lembrando a cada olhar uma morte diferente, mesmo sabendo que o coração ainda bate, que a persistência é bem típica nas suas mãos, nas mãos de um acelerador de milagres. Mesmo sabendo que é tudo proposital, que você volta a qualquer hora, assim que salvar as flores. Eu me sinto esquecida, porque nós não somos invisíveis. Somos o grito.

     Depois do acidente que o deixou completamente parado nessa cama, pensei que nunca mais teria companhia. Pensei que estaria, agora sim, eternamente perdida na solidão do mundo. Pensei no quanto seria trágico e desesperançoso - mais que isso, abafado - continuar com os mesmos sonhos e as mesmas promessas. Pensei no aquário que montamos, de vidro cor-de-insanidade, onde plantaríamos um baobá, para ver até quando a insanidade resistiria à natureza, para ver até que ponto as raízes seriam mais fortes que a loucura. O tempo de estar em coma poderia, sem dúvidas, ter me deixado louca. Esperar dia-a-dia o Igor me chamar com voz rouca e fraca, como se estivesse apenas acordando de um cochilo de fim de tarde, mas estando inconsciente há aproximadamente sete meses, poderia me quebrar em pequenas partes como se quebra um galho seco. E eu juro que demorei para entender o que acontecia. Passei semanas sendo apenas os olhos vermelhos que encharcavam o rosto do Igor enquanto ele se vestia de vazio. Sem nenhuma palavra, sem nenhum consolo em minha direção, nenhum esforço para mover os lábios. Mas entendi.

     Entendi quando as flores começaram a ser trazidas de volta.

     Todas com cinco pétalas.

     Foi desse jeito que aprendi a fazer os vasinhos de papel. Eu tinha que esperar, porque era um pedido das flores. E as flores jamais podem ser deixadas para depois. Jamais. Mas ninguém acreditaria em mim. O Igor se propôs a cumprir a promessa. Ele sabia de tudo o que estava acontecendo, fez tudo como planejou, arquitetou a própria liberdade e a iluminação do aquário antigo. Entendi no final da tarde da terceira semana do terceiro mês, quando o vento trouxe consigo uma flor amarela de cinco pétalas e a largou no meio do quarto, no chão vazio. Eu não sabia que precisava fazer os frascos, não ainda. Mas o sinal havia sido dado. O Igor iria salvar as flores, uma a uma, e era preciso ficar invisível antes, para gritar só depois. Era preciso confiar na linha tênue que separava o inconsciente da morte, confiar no silêncio pairando por cima das nossas cabeças e na incoerência que me sobrava, pois eu não era capaz de convencer ninguém de que o Igor estava bem mais forte e mais ativo do que nunca. Ágil. O Igor estava capturando as murchantes e colando as pétalas como se o suor fosse o único analgésico de uma primavera falida.

     As flores iam recuperando seu espaço no mundo em troca da voz dele. E viajavam perante minha esperança como se o tempo voltasse para ficar. Como se houvesse tempo. Como se houvesse lugar para a gente morar com a nossa poesia debaixo do braço. Como se as coisas começassem a funcionar outra vez.

     Todas as pessoas ainda choravam por conta das condições dele. Começaram a chorar por mim também, achando que eu havia ficado doente. Desvairada, para ser mais específica. Éramos apenas ele e eu como cúmplices. E eu sabia que no início da primavera todas as murchantes estariam novamente com cinco pétalas, porque o Igor materializava a estática em forma de flor. Há alguns dias eu pude sentir pela primeira vez o perfume. Igor nunca esteve tão vivo, tão heróico. Ele demora, pois existe um exército inteiro de murchantes para serem desenterradas e trazidas à tona junto à consciência dele. E tudo virá de vez. E tudo virá inebriante. E tudo virá fatal. Acreditem em mim. Daqui a pouco, as flores estarão ressuscitadas.

     E tudo virá sem volta.

     (Mariane Cardoso)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Só pra quem sabe viver

     Ligava o chuveiro no mais quente, parecendo que tinha pressa para ser consolada. E tinha mesmo. Haja água nesse mundo para tanto choro. Haja promessa mal feita, pois a partir de hoje não iria esperar nada em troca, a partir de hoje atravessaria a rua na faixa de pedestres, a partir de hoje lembraria de dormir ao toque de recolher. Mas já tocava tanto dentro de si, como se respirar fosse uma obrigação, não um alívio. Quem descobria tanta dor ficava assombrado. Era de praxe e não havia problema sério, só um nó nas cordas vocais, uma lembrança que clamava por afeto, uma mão querendo encontrar apoio pra essa vida que nunca se sustentou sozinha, um afago e uma tulipa qualquer que se atrevesse a nascer na janela. E Tulipa Ruiz tocava no fundo do cômodo, mas a erva daninha não deixava. Durante anos, sem milagre de beleza, sem distração de si mesma. Ela nunca mais colocou um relógio naquele pulso, mas não por causa do tempo: pois o sol bronzeou tudo em volta, menos o que estava protegido. Ela saiu querendo estar limpa e consolada, e se o bronze viesse, que fosse por completo dessa vez. Já não estava sem tempo de assumir o coração-cruz que lhe deram.

     A: - Hoje eu não ensaiei nossa peça teatral.
     B: - Pois é, e você sempre esquece a mesma fala.
     A: - Não sou eu, o script que está errado.

     E por que tinha que vir de dentro dela? Por que não podia ser o destino, a mãe natureza, a má sorte, a coincidência culpados de tudo? Não que fosse bom seguir no incêndio, mas viver no paraíso implicava em não ser a própria, em não ser real. Fruta que cai do pé é a mais doce, a mais fácil de ser engolida. Então alguém explica por que ela sempre caía e não conseguia passar pela goela? Como, isso de crescer na sombra pra morrer tranqüilo? Gente que se arrasta fugindo do frio, arranhando a pele meio que dizendo “vai, meu filho, vamos trabalhar, pega o incinerador e faz favor de apontar pro coração”.

     A: - Vou queimar esse script agora.

     (Mariane Cardoso)

Limites Infinitos no Infinito

      Aqui ficam os pedaços do mundo e se perdem os fatos marcantes, e as vidas passadas. Eu perdi. Tenho encarado demais pela frente e então percebo aos poucos que não sou vítima apenas de mim, nem apenas da vida, nem apenas de nós duas juntas. Sou vítima mais que certeira das escolhas e do vento e, sobretudo, da História. Entendi também que procuro coisas que talvez não sejam minhas, mas que eram para ser ou que já foram. Onde se perderam? Lá atrás. Eu devaneio sobre minhas condições e meus motivos, que às vezes não são muitos, nem graves, sequer perceptíveis. Eu quero compreender onde eu atiro para matar meus monstros, mas eu não descubro, porque eles não são meus e eu nunca tive controle sobre minhas passagens no tempo. Então, em dias de vento, eu penso em quebrar uma janela, rasgar algumas páginas importantes, destruir minhas fitas mais urgentes para ter certeza de que eu consigo sobreviver às minhas partidas. Eu prendo um pouco o choro para ver até onde aguento. Concentro e faço aos tropeços minha recomposição. Eu, quem sabe, não serei isso para sempre. É nessa parte que não suporto e solto meus calafrios: Quantas almas de mim eu já deixei para trás? Eu não tenho afirmação de que era para ser isso mesmo ou se eu passei direto na esquina em que eu tinha que entrar e sequestrar uma alma nova. Eu não consigo captar por que eu, com infinitos trilhos dentro da História de um universo inteiro, peguei justamente aquilo que sou agora. Pois ser quebradiça nessa metade de Eras, e Períodos, e Idades, não me faz nada bem, nada bem. A única sensação que tenho é a de que não sou por inteiro, que preciso das minhas outras fatias de força, de calma, de controlar os desesperos ao acordar. Aquelas que eu não encontrei nas datas e nos lugares os quais não sei e, acho, nunca irei saber.

     (Mariane Cardoso)

Dar Adeus


"Ande, vamos. Estão nos esperando. A vida está nos esperando."
                                                                          Carlos Ruiz Zafón




     Igual a querer alimentar a primavera inteira com uma única lágrima peralta. Faltam pedaços do campo onde os passos não cabem, onde as plantas esquecem de nascer porque o calor abandona, onde ninguém guarda lugar. Fica confirmado apenas o espaço em branco de que não seremos capazes de ocupar tudo, nem de contar as tulipas nos dedos. E falta fixação, pois esqueceremos. Sim, esqueceremos. Donos de mentes tão abstratas e flutuantes, desconexo fica o tempo em nossos relógios, os carinhos em nossa boca e as imagens no subconsciente. Esqueceremos porque a fraqueza em si é forte, apenas faz de nós pequenos. Esqueceremos porque o vulto que persiste não é suficiente. Porque é necessário, antes de tudo, sentir na pele e chamuscar. Porque o verão não é o melhor. Porque alma nasce pobre. Esqueceremos, pois as pétalas vão no vento. E ir embora é pré-requisito para viver, se espalhar para longe até parar na ressaca de algum outro destino. O beijo e a pedra, enganam-se, não ficam guardados no coração como antes. Dar adeus exige olhos fechados ou calcanhares rígidos. Cada um sabe no íntimo de si o que é deixar para trás. O palpite é encarar a rua, o chão é quente de asfalto e o centro é cercado e sem refresco. Atrás do olhar se esconde aquilo que os pedestres nunca haverão de saber, nem nós mesmos. Foi esquecido. E cansar os ombros é quase uma luz tangível nos dizendo para não desistir agora. Vão embora de uma vez. Vão na trilha. Vão nos postes. Vão nos detalhes deixados de lado, mas partam. Com consciência de matar as cicatrizes. Sabemos que elas não ficam e, se ficam, precisamos ver para saber. Vão na certeza de que é sem volta. E dizer até logo é símbolo. Tem que ser para fixar. Nem que seja a escolha. Nem que seja a nossa própria sabedoria mínima e mesquinha. Dizer adeus é revolucionar esses campos que não florescem jamais, negar os vazios e os desleixos tão mínimos durante o passeio na cidade. Esquecendo, ferimos profundamente o que ficou de imperceptível. Eu dou adeus como se a primavera viesse atrás. Dou adeus antes de ser eco. E não é apenas figurativo, nem mesmo falando de desabrochares. Eu esqueço a vida para não ser esquecida por ela.

     (Mariane Cardoso)

quinta-feira, 17 de novembro de 2011


Bom dia, meu amor de quatro meses e outras vidas

     É mais um beijo de acordar o sol. Eu já saí do sonho e ele já quer andar pela casa. Sem sapatos, porque acha que nós ainda não somos reais. Mas eu o seguro pelo pulso, sou dele e ele tem que saber que também é meu, ele tem que saber que eu acordo antes do beijo só para fingir que durmo. E para sentir antes de falar.
     - Bom dia, meu amor de quatro meses e outras vidas.
     - Bom dia. Eu já fiz as malas, Mar.
     - Para o quintal?
     - Para o quintal.
     Se adianta antes do entardecer, pois nunca entardece. A luz fica grudada nas estrelas dos olhos dele. Cada uma delas eu ganho debaixo do teto, sem vista para o alto. Mas vou entregando meus beijos para sarar ou enlouquecer, e não me importo. Adriano insiste comigo até desmaiar pelos lábios. Eu não digo outra vez o quanto a gente sobrevive. Me assusto porque aprendemos a fazer festa na cozinha por qualquer banalidade. Prendo uma mecha de cabelo entre os dedos dele, eu também posso ser balão e descobrir o céu.
     - Amanhã faremos aniversário de novo, meu mago.
     - Mas no quintal, né?
     - Aí não vai ter brigadeiro.
     - Então te dou minhas estrelas.
     - E eu minhas escamas.

     (Mariane Cardoso)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

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Existem esses braços moles, essas pernas bambas, esses olhos cansados, essa boca infeliz, essa coluna curva, sinais da incapacidade de transcender, da impossibilidade de se decompôr em forma de livro de contos, de canal de música, de lápis de cor, de chocolate ao leite ou qualquer que seja o seu gosto. O amor acaba com o corpo e todas essas coisas ocupam espaço demais, nos impedem de ser além, a mais, porém, assaz. Amém. Eu me retiro de tudo aquilo que o mundo possa me oferecer.


Mariane Cardoso em "Retirante, a ordem natural dos corações"

Laranjeira

I
O escravo nasceu livre

Sob uma laranjeira madura, o tempo cheirava a cabelos de lavanda naquele dia, eu me lembro bem. A cor era azul. A negra sentia as dores no interior da barriga, vinha sozinha por entre os pés de laranja, correndo, cantava evocando as loas, com os sons de búzios e tambores na cabeça que aprendera desde pequena. Agora era mulher e quase mãe. Erzuli do amor, loa do seu constante pensamento, não deixaria que nada de ruim acontecesse. A pontada no ventre era maior. E maior, e maior. Ela se escora no tronco da árvore e pega uma das laranjas podres, caídas pelo chão. Aperta entre os dedos, prende o grito, espreme os olhos. A dor do parto vinha em ondas pelo rosto. Eu vi. Eu senti também porque era em minha frente que a cena acontecia. A mãe sussurra por Erzuli e chora, o rosto fica vermelho, o suor pinga pelos cabelos. A criança custa nascer. A laranja praticamente esmagada dentro da mão escura, a boca mordida do esforço. O menino era café misturado com leite, as perninhas miúdas, o cabelo esparso. Foi embalado na saia grande da negra, que deitou e adormeceu algumas horas no mesmo local. Juro que pensaria que havia morrido se eu não pudesse ouvir sua respiração.

II
Apresentação

Eu sou a laranjeira madura.

III
Imóvel

Eu não podia fazer coisa alguma: medir o coração da escrava, limpar o rosto da criança, puxar a água que o solo me entregava e refrescar o sufoco que é o fenômeno da vida. E não de uma vida qualquer, mas de uma vida humana. Eu presenciei a dor que transbordava dos olhos dela até que parasse e fosse sair das cordas vocais do menino. Nasceu chorando. Que novidade foi aquilo, pois eu nunca havia assistido a um nascimento tão forte, que se confirmava por si só, como se chegasse dizendo: Eu tenho a vida e ela não escapa de mim. Os humanos ainda deveriam ser muito observados. Era realmente bonito. Eu choraria se tivesse lágrimas, por pura inveja. A mãe acordou, como eu disse, depois de algumas horas, quando os capitães do mato a cercaram com o filho na saia e a fizeram despertar. Carregaram-na, mas não com brutalidade. Eu não sei como funciona o sistema, não me perguntem, eu só digo o que vejo. E vi até que ficasse longe demais para tal ação. O único vestígio que me restou foi o sangue perto das minhas raízes, e que seria absorvido por mim mais tarde, sem dúvida. Mas o que me incomodava de verdade era a liberdade daqueles dois. Eu sinto o cheiro da tarde e sou mais sensitiva que os girassóis do inverno. Que inveja de não ter nascido no lugar do menininho cor de caule. Por que, Gaia? A liberdade era o batuque de tambor que senti vindo do pensamento da mulher. A liberdade era o choro dançando pelas fendas da garganta, chamando os capitães, atraindo a dor. Pois até atrair a dor pode ser uma opção para esses humanos, mas não para mim. Com ou sem as correntes, as tarefas, as algemas, os castigos. Com ou sem abraço no tronco de terror que é feito com árvores como eu, eles são livres. Eu sou a laranjeira escrava que decodifica as cores do dia. Invejo os livres com marcas nas costas, pois ninguém sabe o sofrimento de perder os frutos para a gravidade, as folhas para o vento. E a liberdade para o firmamento. Iguais a mim outros existem, perdendo as laranjas, prendendo as mãos. Mas nenhum outro assistiu ao parto como eu assisti.

Eu sinto falta de deixar de ser a laranjeira.


(Mariane Cardoso)

domingo, 13 de novembro de 2011

"É invisível aos olhos o essencial"

     As unhas vivem pretas. Mas uso vermelho acobertando as pernas onde deveria existir luto. Os olhos foram marcados muito antes do espetáculo começar e os brincos chovem até os ombros, escondidos pelos cabelos. A coxia nem é mais assustadora que o meu quarto. É aquele teatro, perto do viaduto onde as crianças dormem em pleno Natal, em que a acústica do ambiente vaza até adormecer. Alguém não tão próximo acaba de confirmar o vazio no instante em que danço na ponta dianteira direita do palco. Eu me concentro nos passos, na ginga, na jogada de cabelo, no vestido que me prende de tão comprido. Dou um sorriso nervoso, faço voo de borboleta com os braços. Monto a tenda, coreografo e sou a bailarina-do-ventre que vira Simun quando os focos são ligados. Simun, o vento árido que varre o Saara, fica nas minhas mãos. Transforma-se nas minhas mãos. Simun é a persistência da minha saia enquanto estou de frente. Mas a partir da porta é outro mundo.

     Por que isso, amor? Por que eu não posso ser atriz para sempre, esconder meus olhos na sombra, enveredar pelos caminhos e acompanhar o Pequeno Príncipe no planeta da tristeza? Como não posso ser vento sem fim? Eu moro aqui, aprendo a proteger os olhos, a encontrar água nas veias. E não tenho a rosa. Por que isso?

     Subo ao camarim repleto de espelhos. A noite não dá trégua, coração ainda não é de vidro e a verdade é que não virá a ser. Escorro a maquiagem no choro, na raiva, na antipatia. O Pequeno Príncipe era tão leve, meu amor, e eu fiz a sua capa levantar, seu cabelo ondular com os meus braços. Era a própria estrela, aquele menino. Não prestei atenção se era ator também. Mas o deixei sobrecarregado dentro de mim. Estraguei.

     Eu sou a dupla face dessa espada que se apressa saindo pela garganta. Pela minha garganta. O que eu procuro é a canção que transforma as crianças poucos metros distantes na própria areia que eu espalho, e os adultos nas lágrimas que eu ajudei a cair. Escondo meus olhos dessa vez, talvez sem validade. Não vejo ninguém indo embora além de mim. Mas, amor, eu continuo a morar aqui. No planeta da tristeza. E a noite... A noite não dá trégua.


     (Mariane Cardoso) 

sexta-feira, 11 de novembro de 2011



À Bru de coração azulejado

     Como o tempo dilacera, minha menina. Ainda pior é o amor. O amor secundário, que a gente esquece de regar, que a gente cega pela preguiça, que estraga de tão inutilizado, esse é o que desfia a nossa cortina e estraga a peça inteira. O rombo tem que ser deixado. O meu teatro não funciona sem aquela música de fundo instrumental, sem aquele uniforme vermelho-vinho e o foco de luz do outro lado - as coisas essenciais de onde se pode tirar a verdade. Eu tenho que ser de verdade. Por isso, sem nem saber da cor dos seus olhos, sem nem saber pronunciar seu nome direito, sem medir nossa distância, eu voei até puxar sua mão. Sua verdade está estampada nos olhos, para quem quer que seja. Eu também sou carente. Eu também tenho ombros pesados, canso. Não durmo. Eu te trouxe de volta porque o palco é seu. O meu está em outro lugar. Veja como às vezes é necessário não ser o personagem principal. Eu brinco de roda, ciranda-cirandinha, ladrilhar a rua. Acabo por azulejar seu coração. E continuo, suponho que agora mais livre. Ou melhor: menos presa. Não desfaço minhas palavras, seja firme. Mas acredite no acaso. Acredite na poesia. Nem todo voo é de borboleta, e existem alguns mais eficientes. Estou atrás das nuvens a te observar como se estivesse prestes a chover.
     Mas o sol persiste.

     (Mariane Cardoso)

Porque machuca

     O valor de uma cadeira surrada era mínimo, mas quando João sentava, o mundo era outro. Trazia os olhos negros de tão tristes, a boca sorridente de tão cansada, traços bons de se descobrir para quem tem coragem de bater de frente com a acidez. Pois era ácido, o homem, também corroído pelo próprio coração. Ele puxava a cadeira arrastando os pés pelo chão, desfiando metros com um barulho sufocante até parar em frente à janela. Sentava e era de novo um milionário, com seu penúltimo cigarro na boca a fitar a rua, a infinita rua e o infinito penúltimo cigarro. Não parava nunca. O cigarro - digo. Mas a rua também. João não sabia se conter com o silêncio da noite e com a turbulência do meio-dia. Era na sua cadeira - com o seu cigarro compromissado, os seus olhos encobertos e lacrimejantes, seus pés impacientes que balançavam rápido rente ao chão bem mais adiantados que a voz de Kurt no som na sala - que João desvendava os profundos medos. E se feria por vício. Também não aprendeu a dosar.
     O telefone toca seis vezes e ele não atende. João pega outro cigarro do bolso e descumpre a promessa: chora, porque o telefone parece um invasor. Tudo o que quer é a solidão, segura e constante. Branca liga uma, duas, três vezes. Desiste. Sente tanto quanto ele. Sabe que ele não vai ler, mas ainda assim, escreve no vento uma ordem, aquela de "a gente tem que parar", querendo que ele seja valente, que ele esfole aquele peito e mostre de novo como é que se queima a ponta dos dedos e a garganta com a agonia presa de um soldado repleto de desorganização. Mas que seja a última vez. Você precisa acreditar em ser feliz, João. E ela querendo que ele volte atrás, mas reconhecendo que não. Sem chuva de fim de tarde é a rua. Sem tulipas crescendo no asfalto. A única prisão da luz era essa, e não conservava a esperança. Pelo contrário, estrangulava as alegrias. Pegava outro cigarro, e outro, e outro, pois eram pensamentos sem fim do quanto existe ao redor... Majoritariamente, tristeza.
     A gente precisa parar, João. Também não sei se isso mata. Não podemos arriscar.
     Perdão. Jogarei fora todas as nossas canetas.

     (Mariane Cardoso)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Miguel


"Essa não é mais uma história de amor.
Essa é a história do Amor."



      Seu cheiro é o cheiro do nascimento de quatro universos. Suponho que o céu, que é o mesmo para nós dois, esteja passando por seus olhos, entregando meus ventos e o beijo que mando pela janela, que me faz silenciar o condomínio inteiro para me ver sentir saudade, que me torna exposta e invariavelmente divertida ao conversar com nuvens à sua procura enquanto todo mundo me vigia pelo vidro. Eu entrego que te amo sem disfarce. Me entrego, me rendo como me rendi sem fazer contas e, em mais setenta vezes que me esperam, serei rendida com gosto de vitória na boca, com gosto da sua saliva que é sonho e acrobacia no meu lábio inferior mordido. Seu cheiro de herói e de príncipe-da-flor se espalha pela casa como o próprio ar, meu ar. Respiro e tenho você fixado por dentro em todas as extremidades. Hoje, tive o esplendor de te tocar.

      Miguel,
      Erramos ao dizer que não éramos brasa. 

      Tudo começa com o abismo. Eu falo três vezes antes das três da madrugada que o abismo é bom, mas você não me responde, pois se ocupa em chamar meu nome. Porque é sua voz se encaixando tão bem na minha pele que garante o meu sustento, dormir tranquila sem correr perigo, sem fugir do quarto ou encarar as paredes. Eu não me sinto presa se for no seu peito. A mão afogada no cabelo, você rouba meu sono assim como o inverno rouba os passarinhos, assim como o outono rouba as folhas. E o amor rouba a morte. Então, é naquela conversa de novo, nariz com nariz, você me contando como é se reconhecer perdido, se reconhecer desatado, se desconhecer, me chamando desde sempre para o abismo esquecido no silêncio, que eu confesso. Posso ser seu mar, mas foi a sua maré quem me trouxe até aqui.

      A surpresa de entender os relógios parados foi grande. E, logo nós dois, que sempre tivemos medo do tempo, que reclamávamos dos ponteiros atacando número por número, pôr-do-sol por pôr-do-sol, sem trégua e bandeira branca, logo nós dois... Fomos os encarregados de levantar o emblema do reino. Por pura sorte. Destino e maldição, bênção - pois somos o inteiro - de outras vidas. O reino do seu beijo que se forma apenas na minha boca. Logo nós dois, meu amor. Nós somos a linha de divisão do mundo e todos os elementos fundamentais estão parados à nossa espera. Não há tempo, verdade ou lugar. Não há nada de essencialmente certo enquanto os poucos meses nos aguardam para que, enfim, consolidemos o amor. E o amor, meu amor, parece refém nas nossas mãos. Está apaixonado pelo nosso reino.

      Você virou mago comigo. Do beija-flor até o anjo. E os dois juntos eu abraço de olhos fechados, ecoando mais que as serras frias, desmanchando mais que a nossa cumplicidade em brasa. Você empunha as espadas, é sempre a guerra, a mesma, com caminhos e vírgulas diferentes. Sinto vontade de puxar pelo seu braço e virar serpentina, Miguel. Me enrolar em seus cachos enquanto a Estrela D'Alva estiver acima do teto a nos espiar, à procura das migalhas que deixamos transparecer nos suspiros, nos choros e nos êxtases. Enquanto os bandidos do céu, em peso, vão nos buscando para capturar um pouco desse amor que se enfiou por nossos poros e não quer, não vai, não tem por onde, não cogita sair. Ser Real também nos cobra a generosidade, dividir e espalhar a beleza com nosso laço, e a vulnerabilidade para com os enigmas do nosso teto, tão caótico quanto a claridade debaixo da nossa cama.

     Eu tenho essa necessidade de ser sua. "Para que só em mim seja provado o quanto corta uma espada num rendido", é o que diz o quinto parágrafo da página onde escondi seu cheiro.

      O seu queixo no meu ombro traduz uma infinidade de revelações que talvez nem a chuva seja capaz de descobrir, nem os alecrins quando se perdem no campo de rosas brancas. A loucura que brota da tristeza, a tristeza que brota do amor, o amor que brota de nós, é tudo um ciclo. Sem choques ou quinas onde machucar. E eu te espero para ouvir os segredos das conchas que fugiram dos meus cabelos para se alojarem em seu ouvido. Dito mais uma declaração, prometo setecentas. Eu te amo tal qual se ama num buraco negro, capturando cada detalhe, existindo em outro plano, florescendo ao pé da porta. Ou ao pé do seu pescoço. Ou do seu pulso. Cheirando até ser eternamente bêbada. Miguel, agora a bandeira vai amarrada na minha cintura. Só porque é a gente. O cobre das chaves é nosso, meu amor. E as portas do reino estão todas guardadas sob as asas.

      Perdidamente,
                                                                                                                                         Clarisse.
                                                                                                                                   Eterna por ser sua.



      (Mariane Cardoso)
     

Corpo Negro

     Bem maior que a minha febre é a superfície do sol. Vamos nos enganando, segurando na corda com cada vez mais força, os braços doendo, a mente cansando, vamos negando o fundo porque temos medo da saudade. A saudade da superfície. Tudo muito iluminado, claro, nítido. Quente e teoricamente aconchegante. É por isso que ninguém afunda, na luta para permanecer perto do sol. Mas, veja bem, é o corpo negro que você tanto afasta, tanto grita, tanto desespera, que pode lhe dar a resposta. Você sabe que eu não estou mentindo. Não tem erro. O meio vai sugando você numa proporção inversa. O escurecimento é a ação da luz na sua pele. O escurecimento é a ação da superfície no seu coração.
     Então, existe um corpo negro. Fundo, alguns fantasmas a rondá-lo. É de lá que saem as respostas que você precisa. Eu visito e terei olhos dilatados para sempre, pois quem entra jamais sai. Mas mergulho. Quanto mais longe, melhor. Morro de medo. E ainda assim viro poço. Mergulho: é no escuro que se incandesce.

(Mariane Cardoso)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Sereia de Vidro

      Vidro não passa de areia - assim diria ela. Não passa daquilo que se acumula no fundo de um mar, de onde brotam os corais e imergem os tesouros. Vidro em abundância, por todos os lados, castanho e em pó, normal como a própria água, como o próprio sal e as próprias sereias... Sem ir além. Aquilo que brota de baixo e é cristalizado diante dos olhos flamejantes e marejados: disso era feita a cauda, os ombros e as estrelas que lhe encobriam os seios. O cabelo verde de algas marinhas era comprido como os raios que se esticavam do céu para o oceano nas tempestades, na tentativa falha de deixar os dois amantes se beijarem. Apenas uma delas podia ser tão quebradiça quanto cristal e, beijo nulo, sua garganta era uma queimadura exposta, tão fixa que ainda ardia. Era dali que saía o canto que metia medo nos marujos, a música dos ventos nas tardes de quinta, quando as folhas lá na terra firme badalavam feito sino, feito tristeza suspensa, feito o próprio vidro refletindo luz no corpo de sereia.

      A poeira do mar é a pior de todas, a mais cruel que você possa imaginar, pois ninguém acredita nela. Mergulhar é um constante desafio imposto pelos deuses, a nadadeira impulsiona para frente enquanto entra poeira pela boca, pelos olhos, poeira que se afoga nos cabelos verdes, poeira engolida que esperneia até no coração. Sereia de Vidro tem um pacto com o mar, tem as lágrimas mais salgadas para não causar transtorno no meio das correntezas, pois se livra da poeira chorando. Chorando pelos olhos, pelos braços brancos feito cetim, pela cauda - e foi o choro tão repleto de poeira, que foi se acumulando, virando peso, se aquecendo toda semana com as cantigas dignas de encanto que saíam daquela garganta, cristalizando, que resultou, enfim, nisso. Vidro. Agora a pobre tem dificuldade para explorar até a própria casa, para brincar livremente entra os rochedos. Agora a pobre tem seus pedaços arrancados sem restauração. Quebradiças mariposas a se torturarem no voo - assim é cada escama sua.

      Puxaram a rede, foi preciso força. Seis pescadores reclamando do peso e vibrando ao mesmo tempo: Um peixão!... Se fossem sonhadores, com certeza algum teria dito: Um tesouro!... Se fossem fúnebres, teriam ficado quietos por vários minutos e depois, doloridos: Uma poesia!... Mas eram apenas pescadores. Sereia de Vidro foi uma surpresa para eles, um desatino, uma turbulência. Nenhum deles sabia o que fazer com a pobre Senhora das mariposas. Eles, por sua vez, foram uma assombração para Sereia de Vidro, um pesadelo, um suspense sem tamanho. Ela não cantou. Chorava, agora com a poeira do barco. Pensava no escuro que era toda essa luz por cima do mar. Ela não queria beijar, queria voltar para o seu amado casebre sem fim que era o oceano. Pela poeira escondida no mar, pelas rochas que diversas vezes tinham abocanhado seus ombros, pelos corais de cores e cristais que faziam amizade com seus cabelos cor-de-mato, pelos peixes inúmeros em cardumes de dança sincronizada, pelas estrelas de vidro que lhe cobriam cada seio tão vivas e tão embrutecidas por conta do seu choro manhoso, ela não cantou. Sereia de Vidro apertou a boca até virarem fornalhas as cordas vocais mágicas. Mas não cantou.

      O Vento, tão traiçoeiro em seu destino, depois de ter recebido os encantos semanais da boca de brasa, depois de ter se chocado entre as folhas para virar as próprias escamas espalhadas no corpo da pobre, foi o mesmo que trouxe o barco até a terra. O mesmo que permitiu que Sereia de Vidro fosse colocada dentro de uma caixa, sua irmã, também de vidro, cheia de água, para todo mundo ver como a luz se refletia em sua cauda. O Vento fugiu e deixou Sereia de Vidro sozinha, dizendo: Beijar, beijar. E cada olhar era mais um beijo. As pálpebras da pobre já eram vermelhas, a cauda se quebrava por pura emoção. À flor da pele, assim era essa flor de vidro. Deixou com lágrimas pelo rosto. Exposta. Deixou que a beijassem, mas deixou tanto, com olhares sobre ela, que passou mais tempo que o próprio raio na tempestade deixando o céu beijar o mar... Sem cantar, por fim, emudeceu. Mesmo com tantas pessoas olhando, não saberia mais seduzir. Não tinha poeira para dançar. Não saberia, assim, cristalizar outra vez.

      Sereia de Vidro foi definhando - em choro, em vida, em poesia, em pó. Afogou-se na própria porção de vidro líquido, que começou a desmanchar dos seus ombros logo após ficar muda. Os homens arrancaram-lhe a cauda antes mesmo de matá-la. As escamas em forma de mariposa, todas que já voaram pelo oceano, formavam um prisma encantado, a luz deveria dividir-se em oito partes dentro da magia delas - eram valiosas. Mas nenhum deles sabia que, apesar dos encantos de casa, o mergulho nunca tinha sido senão desafiador. "Não me deixem beijar" era o que ela teria dito a todas as companheiras de rua oceânica se ainda tivesse voz, se ainda pudesse vê-las. O canto permaneceria fornalha para sempre, isto é certo, mas o beijo, amigos, era a morte jurada para uma Sereia de Vidro.

      Esconda o beijo, Sereia, deixe mostrar apenas a garganta. Afogue-os e faça-os conhecerem a agonia de estarem em suas mãos. Baile de cabelo verde e não pare de sorrir, não pare, não pare enquanto o ar estiver acabando nos pulmões. Mas já é tarde, querida Senhora, ex-Senhora. O mar não é de vidro, quem se quebra é você. Sem tempestade, a esperança no colo do Vento, as estrelas se suicidam tentando fazê-la voltar. Cada mariposa roubada do seu corpo descansará em um esconderijo do mundo, voará até tomar conta do céu e dos mananciais. Será como o seu mergulho ardoroso e perpétuo, e a sua tristeza ainda ecoará nas árvores. Beijou. Até o barco que a transportou se suicidará nas águas profundas, algum dia, qualquer dia... Até os fios de cabelo verde-mato restantes na beira da praia traduzirão a poesia do seu vidro.
Sereia de Vidro.
O mar é seu choro.


(Mariane Cardoso)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Espelho

Entre tragadas de cigarros
e tacadas de golfe,
teu destino
passa.
Algumas fórmulas simples
e dispensáveis;
depois do meio-dia,
o sol já não te faz inveja.
Tu te escondestes dos topos.
Tens medo da altura,
tantas vezes traiçoeira.
O passeio na orla
já não te faz falta.
Foi-se escoando
pelos fios de cabelo
os miúdos requintes de alegria.
Sorris agora
e gritas por dentro
 Não tens ideia do quanto és intocável,
o mundo não mais te alcança,
os ventiladores ficam ligados
por costume,
nada te refresca:
estás condenada à atividade vulcânica
de um coração
vazado.

(Mariane Cardoso)

Gigante


Como uma pluma, um dente-de-leão, uma partícula de gás, você é leve, meu amor. Meu menino, minha irracionalidade, minha construção nos ares. Você me fala com voz mansa que tem muito chumbo aí dentro, que tem balas de pistolas e cabos de facas encrustados em seu coração, que tem mãos e pés enrolados, que já cortaram suas asas há tempos e - embora triste - é tudo interno. Mas você voa sem asas, amor. Você aprendeu qualquer coisa sobre levitar, flutuar etc, e só sei que você fica suspenso e me suspende junto. Me arranca um sorriso, anjo sem asas, me tira da seriedade trazida pela vida. Me inventa em outros mundo, outras esferas, outras realidades irreais, coberta da poeira da praia, com o cabelo trançado, dourada, toda sua, toda sua. Me faz sereia, princesa, humana perfeita. O tempo é muito curto para nós dois; o chão é raso; a água, tutti-frutti. Passarinho, você nunca vai passar, não. Mesmo longe, mesmo em outro continente, sua lembrança é incontinenti. Mesmo noutro mar, noutro chão, o colchão, o lar estarão para sempre guardados. Sem réu, só céu.
(Mariane Cardoso)

Debulhei

Então eu me questiono
e se questionar com
cabeça no travesseiro
choro na garganta
não leva a crescer
a conseguir, num soluço,
desaparecer.

Estou no lugar do criminoso
vai saber...
Do criminoso que é inocente
do criminoso que não se acredita
não se julga no encaixe
não se põe no lugar
que de tanto falarem que é criminoso
passou a agir como um.

Eu pego a minha culpa
- mas culpa de quê, meu Deus?
Culpa de quê? -
e remoo por inteiro
espalhando cada parte
que não cabe a mim.

Ando cabisbaixa
sem encarar os olhos
ou porque tenho medo de polícia
ou porque não suporto essa gente
mas penso mesmo
que é falta de briga
que minha valentia talvez
pusesse um fim no perigo.

Eu me acolho debaixo do frio
“Pois bem, não me toque,
não me sorria,
não me deseje boa noite
nem ache que tudo é como antes
que podemos ser cúmplices
que posso estar a seu favor”
O nada é o vestígio da minha resposta.

O que há comigo?
Como se mandasse correr e as pernas não o fizessem
como se dançasse no entorno da fogueira e não chovesse
ouço e silencio enquanto me acusam lá fora
seguram pedras
antes de contar até três.

E não corro
não brigo
não aparece chuva para esconder meu medo
fico assim encarando minha mentira
feito uma velha conhecida
fecho bem meus lábios
faço questão de ser neutra
sabendo que ninguém mais sairá em minha defesa.

Creio ainda que não foi por amor
nem por segurança pessoal - o meu crime.
Parece-me de longe
base de vaidade e orgulho
e de sentimentalismo bobo
que poem conhaque em qualquer prato de sopa.
É parede ao longe
a incontrolável vontade de ser verdade.

Barram-me na entrada
e minha provável sede de ser inteira
me espreme contra tijolos
enquanto finjo que sou forte
e que carregar culpas improváveis
"tá pra mim, baby".

Não mergulho em mais ninguém
pois no dia em que mergulhei
vi centenas feito eu
parados na fila de espera
sem rifle e sem juízo
de boca bem vedada
incuravelmente machucados
e culpados em todos os aspetos e fases do mundo
feito eu.

Eu
que sou criminosa
querendo ser
eu.

(Mariane Cardoso)

Meinen Frieden



          Mãe, já não sei o que fazer. Por que tivemos que nascer na Inglaterra? Todos muito patriotas de acordo com a palavra daquele farsante que é o Churchill. Não consigo entrar no discurso dele, não consigo pertencer à guerra depois do que ela fez com a nossa família. Desculpe-me, mãe, por estar prestes a escrever coisas dolorosas, mas já não aguento. Queria tanto visitá-la, sair dessa casa e passar a morar aí, mas as estradas estão incrivelmente perigosas, você sabe. Tudo o que tenho é medo. Medo, você e a Sara.
          É por vocês que resisto.
          O aniversário da Sarinha passou e nem pudemos comemorá-lo com a Senhora. Fiquei com o coração na mão, encho de lágrimas os olhos só de pensar que ela já entende das coisas. Sabe o que ela me falou no dia do aniversário? "Mamãe, você já viu aqueles passarinhos barulhentos que voaram algumas vezes por aqui? Será que eu não podia montar em um pra buscar o papai? Eu queria ganhar isso de presente, é muito caro? Eu gosto das suas histórias, mãezinha, mas o papai fazia aquelas caretas e eu achava bonitinho. Sinto falta dele, será que ele volta mesmo? Ou será que ele foi passear procurando o arco-íris?"
          Isso me estrangula. Imagine, mãe, a Sara vive falando que está mocinha. Sete anos e já está mocinha. E a guerra? Cresce como se fosse se transmutar para a vida adulta. Eu nunca pensei que entenderia tanto a sua dor. Eu perdi meu pai, morreram pedaços de mim. Mas nada comparado ao que devia passar aí dentro. Você era a mulher da casa, era a bancada de oração, a força em que eu me apoiava, mesmo enquanto você estava querendo se matar por dentro. Você resistiu. Além disso, era a primeira vez que uma briga desse tamanho acontecia, ninguém sabia se existia saída para aquele inferno, se existia reconstrução para uma desolação daquele tamanho. Tenho muito orgulho de ter saído do seu ventre. Serei forte para preservar a infância da minha filha, mãe? Ela me pergunta demais sobre o pai, não posso deixá-la saber dos perigos, não posso. Sua neta não brinca mais com as meninas aqui da vizinhança, todas muito recolhidas, e nós - as mulheres - sempre atentas aos alarmes. Já recebemos vários treinamentos, mas nunca nos aconteceu de estar em apuros. Só que isso não me livra do sufoco. Choro todas as noites. O Filippo era tão essencial nessa casa.
          O que eu devo fazer? Sustento essa guerra sozinha. Não conto a Sara, não me deixo abaixar a cabeça, dou várias risadas com ela como se tudo fosse voltar ao normal. Mãe... faz seis meses que não recebo uma carta dele. Eu o amei desde que o conheci, você sabe da nossa história, você sabe do quanto eu me trancava no quarto platonizando aquele homem. Você sempre foi minha melhor amiga, sabe o quanto a minha vida estragaria se ele não voltasse. Se aconteceu alguma desgraça a ele, se aconteceu o pior... Não saberei como seguir. Penso na Sara, penso em você. Você sim teve peito para aturar a notícia da morte de um marido. Mas eu... Pelo nome de todos os santos, não sei o que será dessa família sem o Filippo. Ajude-me a orar, reze por nós. Rezo sempre por você também, agradeço por você não ter desistido da vida, por ter me colocado em primeiro plano. Peço que meu Santinho me dê sua coragem.
          A Inglaterra parece ser a mesma daquele tempo negro. Eu via a correria na primeira guerra, vi meu pai entrando no navio enquanto aquele outro moço que era amigo dele tocava gaita, e me falaram que a canção tinha o nome Despedida no título, e eu pensei que ele estava indo buscar tesouros, que ele estava indo enriquecer nossa tão querida Inglaterra, sempre soldado, sempre pronto para defender o que era dele. Mas a Inglaterra o matou. Terra inútil, mesquinha. Levaram o meu pai e agora querem levar o meu amor, o meu Filippo. Levar o pai da minha Sara. Perdoe-me, mãe, perdoe-me. Já pensei em suicídio. Mas não se preocupe, não quero que fique pensando em coisas terríveis como essa. Eu prometo que cuido bem da sua neta. Eu te amo tanto, queria poder te falar isso mais vezes.
          Sara pergunta por você, sente sua falta de verdade. Se você visse como ela está linda. Mas eu estou me sentindo velha, com olheiras, com dores nos punhos. Tenho acordado assustada, conferindo se estou mesmo salva. Levanto quatro vezes à noite para garantir que Sara esteja deitada ao meu lado na cama. Pego a foto de Filippo e penso em meu pai, na dor das mulheres que já vi chorando depois de receberam aquela famosa carta dizendo que Fulano de Tal encontra-se desaparecido. Que tirem esse mal do meu caminho. Eles abafam tudo, eles nos escondem as verdades, falam só que somos privilegiados, que estamos numa ilha protegida, que a marinha é forte e sei lá mais o quê. Quero saber do meu marido. Preciso ter certeza de que ainda temos muita coisa pra viver pela frente. Mãe, fala para mim, ele vai voltar, não vai? Naquela primeira guerra as técnicas eram rudes, mas dizem que agora tudo ficou mais certeiro, mais seguro. Ele vai voltar, não vai?
          Ele tem que voltar. Que direi para minha filha se ele não chegar em casa são e salvo? Que história inventarei? Tão menina, eu já senti isso. Tenho que salvá-la dessa destruição, mãe, tenho que tirá-la dos traumas aos quais eu mesma fui submetida.
          Qualquer notícia que eu tiver dele, avisarei a você. Desculpe o peso todo que coloquei em suas mãos, não queira carregá-lo, mesmo com esse coração enorme que você tem. Também adquiri seu coração depois que tive Sara. Eu só precisava conversar com alguém, e só vejo você me abrindo os braços, mãe. Essa guerra parece que é o reflexo do demônio. Um estrago muito bem feito que todos têm que remendar, sobretudo os civis, os donos da carne e do osso que agora são esquartejados e jogados pelos campos, as pessoas que tinham suas vidas pacatas, sua varanda para varrer, suas crianças para ninar. Preciso dele, preciso dele. Quando tudo isso acabar, quando o Filippo vier, pegarei você e a Sara, vamos morar na América, vamos para bem longe desse turbilhão de catástrofe que acompanha a Europa.
          Sara manda beijos, diz que fez um pedido para te ver sempre bem. Amamos você. Em breve, com toda a fé, nos veremos novamente. Por favor, proteja-se. Não deixe que os monstros de ambos os lados cheguem perto da Senhora. Prometo que ainda pedirei sua bênção de perto. Cuide-se.

(Mariane Cardoso)
Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.