Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sábado, 26 de novembro de 2011

Travessão e Boca Livre

     Eu já tive essa conversa com você, P., embora muita coisa tenha mudado. Fiquei guardando para te contar: considero que ando mais autossuficiente. Afinal, independência foi o que eu sempre quis, não foi? Mas ainda falta muito. Falta muito mesmo. Esses patamares a gente alcança engatinhando, e eu falo, porque tenho que me aceitar sendo aos poucos. As pessoas precisam entender que a solidão é pré-requisito para o crescimento. A gente tem que entrar em contato com o fundo do poço, ir sem medo, com a certeza também de que ninguém estará lá em cima pronto para nos puxar para fora. É um processo de terror. Tem que ser. A gente precisa aprender a ter coragem sozinha. Se procura ir além, P., não pode esperar que eles estejam antes de você na linha de chegada.

     Eu já passei da fase em que precisava comprar e vender imagem. Porque tudo é um grande comércio, você sabe. E ninguém ganha nada sem dar algo em troca. Eu cansei, P. A única vontade que eu pedi para se realizar de dedos cruzados foi a de ser autêntica. A de ser apenas a mesma de antes, a que escrevia para jogar fora depois. Porque palavra não é para ser guardada em coleção. Palavra parada na estante empoeirada é de provocar o choro, mas o choro de nojo, e não o choro que eu quero provocar - aquele de autoconhecimento. Ou destrói ou não destrói, mas manter no padrão, isso não. É necessário praticar o desapego material. E não dá enquanto muita gente está de olho, sempre querendo me controlar, compreende?

     Eles gostam
     quando eu sou constante.
     Mas eu
     não sou.

     A escritora também decide não tomar café-da-manhã quando o sono passa das 11a.m., e tira um cochilo no sofá enquanto deveria estar acabando de estudar a matéria. Eu também me atraso. Eu não sei, P., o que eles querem cobrar. A cidade em que eu moro tem esgotos a céu aberto. Não conheço ninguém do condomínio, só a minha vizinha de porta. Quando eu vim para cá, pensei que perderia todos os antigos laços. E, de fato, só me restaram quatro (sendo que dois são da família). Então, P., eu não tenho tempo para obedecer, a não ser minha própria consciência. E eu sei muito bem sobre mim. Mais do que as pessoas normalmente sabem sobre si mesmas. Eu vou carregar esse peso sem abaixar minha cabeça. E sem dar motivos. É uma merda isso tudo. Eu já faço sozinha, não há necessidade de plantões. A observação não altera a essência da coisa, se é que me entende.

     E espero que você saiba que eu sou madura o suficiente para estar do lado do travessão, e não da boca livre. Existe uma enorme diferença entre o que passa pela cabeça e o que passa pela boca. Nem metade precisa se chocar com o mundo. Há objetivos, P., ou o que eu chamo de persuasividade. Pelo menos eu acredito que haja, na maioria dos casos. Prefiro continuar na esperança de que nem todos se renderam às banalidades. E eu, pura e intuitivamente, sou o travessão. Não fico no meio da praça, só me nota quem pula a linha. E é preciso estar forte. Como quando se joga em um precipício.

     Aprenda, P.
     Nós cantamos
     a canção dos inconvenientes
     e o badalo
     dos sem ritmos.
     Nunca é o batuque em si,
     mas o silêncio
     entre um e outro
     que fica subentendido.
     É necessário que estejamos
     livres
     até quando nos predispomos
     a definhar.

Mariane Cardoso

5 comentários:

  1. Fan-tás-ti-co. Me encaixei perfeitamente principalmente na primeira parte. Você me deixa boquiaberta Mari. De novo: Parabéns.

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  2. Mas que coisa linda! Escreves com uma perfeição única, que sempre procuro nos livros. Há autores de livros muito famosos que não escrevem nem metade do que escreves! Acho que deveria ser escritora.

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  3. Sei nem o que escrever. Só senti. Lindo, realmente lindo. Tenha uma boa semana!

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  4. Que texto incrível, Mari. Acho que este entrará na lista dos meus favoritos. Eu te admiro muito viu? Parabéns...

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.