I
O escravo nasceu livre
Sob uma laranjeira madura, o tempo cheirava a cabelos de lavanda naquele dia, eu me lembro bem. A cor era azul. A negra sentia as dores no interior da barriga, vinha sozinha por entre os pés de laranja, correndo, cantava evocando as loas, com os sons de búzios e tambores na cabeça que aprendera desde pequena. Agora era mulher e quase mãe. Erzuli do amor, loa do seu constante pensamento, não deixaria que nada de ruim acontecesse. A pontada no ventre era maior. E maior, e maior. Ela se escora no tronco da árvore e pega uma das laranjas podres, caídas pelo chão. Aperta entre os dedos, prende o grito, espreme os olhos. A dor do parto vinha em ondas pelo rosto. Eu vi. Eu senti também porque era em minha frente que a cena acontecia. A mãe sussurra por Erzuli e chora, o rosto fica vermelho, o suor pinga pelos cabelos. A criança custa nascer. A laranja praticamente esmagada dentro da mão escura, a boca mordida do esforço. O menino era café misturado com leite, as perninhas miúdas, o cabelo esparso. Foi embalado na saia grande da negra, que deitou e adormeceu algumas horas no mesmo local. Juro que pensaria que havia morrido se eu não pudesse ouvir sua respiração.
II
Apresentação
Eu sou a laranjeira madura.
III
Imóvel
Eu não podia fazer coisa alguma: medir o coração da escrava, limpar o rosto da criança, puxar a água que o solo me entregava e refrescar o sufoco que é o fenômeno da vida. E não de uma vida qualquer, mas de uma vida humana. Eu presenciei a dor que transbordava dos olhos dela até que parasse e fosse sair das cordas vocais do menino. Nasceu chorando. Que novidade foi aquilo, pois eu nunca havia assistido a um nascimento tão forte, que se confirmava por si só, como se chegasse dizendo: Eu tenho a vida e ela não escapa de mim. Os humanos ainda deveriam ser muito observados. Era realmente bonito. Eu choraria se tivesse lágrimas, por pura inveja. A mãe acordou, como eu disse, depois de algumas horas, quando os capitães do mato a cercaram com o filho na saia e a fizeram despertar. Carregaram-na, mas não com brutalidade. Eu não sei como funciona o sistema, não me perguntem, eu só digo o que vejo. E vi até que ficasse longe demais para tal ação. O único vestígio que me restou foi o sangue perto das minhas raízes, e que seria absorvido por mim mais tarde, sem dúvida. Mas o que me incomodava de verdade era a liberdade daqueles dois. Eu sinto o cheiro da tarde e sou mais sensitiva que os girassóis do inverno. Que inveja de não ter nascido no lugar do menininho cor de caule. Por que, Gaia? A liberdade era o batuque de tambor que senti vindo do pensamento da mulher. A liberdade era o choro dançando pelas fendas da garganta, chamando os capitães, atraindo a dor. Pois até atrair a dor pode ser uma opção para esses humanos, mas não para mim. Com ou sem as correntes, as tarefas, as algemas, os castigos. Com ou sem abraço no tronco de terror que é feito com árvores como eu, eles são livres. Eu sou a laranjeira escrava que decodifica as cores do dia. Invejo os livres com marcas nas costas, pois ninguém sabe o sofrimento de perder os frutos para a gravidade, as folhas para o vento. E a liberdade para o firmamento. Iguais a mim outros existem, perdendo as laranjas, prendendo as mãos. Mas nenhum outro assistiu ao parto como eu assisti.
Eu sinto falta de deixar de ser a laranjeira.
(Mariane Cardoso)
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