Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Sereia de Vidro

      Vidro não passa de areia - assim diria ela. Não passa daquilo que se acumula no fundo de um mar, de onde brotam os corais e imergem os tesouros. Vidro em abundância, por todos os lados, castanho e em pó, normal como a própria água, como o próprio sal e as próprias sereias... Sem ir além. Aquilo que brota de baixo e é cristalizado diante dos olhos flamejantes e marejados: disso era feita a cauda, os ombros e as estrelas que lhe encobriam os seios. O cabelo verde de algas marinhas era comprido como os raios que se esticavam do céu para o oceano nas tempestades, na tentativa falha de deixar os dois amantes se beijarem. Apenas uma delas podia ser tão quebradiça quanto cristal e, beijo nulo, sua garganta era uma queimadura exposta, tão fixa que ainda ardia. Era dali que saía o canto que metia medo nos marujos, a música dos ventos nas tardes de quinta, quando as folhas lá na terra firme badalavam feito sino, feito tristeza suspensa, feito o próprio vidro refletindo luz no corpo de sereia.

      A poeira do mar é a pior de todas, a mais cruel que você possa imaginar, pois ninguém acredita nela. Mergulhar é um constante desafio imposto pelos deuses, a nadadeira impulsiona para frente enquanto entra poeira pela boca, pelos olhos, poeira que se afoga nos cabelos verdes, poeira engolida que esperneia até no coração. Sereia de Vidro tem um pacto com o mar, tem as lágrimas mais salgadas para não causar transtorno no meio das correntezas, pois se livra da poeira chorando. Chorando pelos olhos, pelos braços brancos feito cetim, pela cauda - e foi o choro tão repleto de poeira, que foi se acumulando, virando peso, se aquecendo toda semana com as cantigas dignas de encanto que saíam daquela garganta, cristalizando, que resultou, enfim, nisso. Vidro. Agora a pobre tem dificuldade para explorar até a própria casa, para brincar livremente entra os rochedos. Agora a pobre tem seus pedaços arrancados sem restauração. Quebradiças mariposas a se torturarem no voo - assim é cada escama sua.

      Puxaram a rede, foi preciso força. Seis pescadores reclamando do peso e vibrando ao mesmo tempo: Um peixão!... Se fossem sonhadores, com certeza algum teria dito: Um tesouro!... Se fossem fúnebres, teriam ficado quietos por vários minutos e depois, doloridos: Uma poesia!... Mas eram apenas pescadores. Sereia de Vidro foi uma surpresa para eles, um desatino, uma turbulência. Nenhum deles sabia o que fazer com a pobre Senhora das mariposas. Eles, por sua vez, foram uma assombração para Sereia de Vidro, um pesadelo, um suspense sem tamanho. Ela não cantou. Chorava, agora com a poeira do barco. Pensava no escuro que era toda essa luz por cima do mar. Ela não queria beijar, queria voltar para o seu amado casebre sem fim que era o oceano. Pela poeira escondida no mar, pelas rochas que diversas vezes tinham abocanhado seus ombros, pelos corais de cores e cristais que faziam amizade com seus cabelos cor-de-mato, pelos peixes inúmeros em cardumes de dança sincronizada, pelas estrelas de vidro que lhe cobriam cada seio tão vivas e tão embrutecidas por conta do seu choro manhoso, ela não cantou. Sereia de Vidro apertou a boca até virarem fornalhas as cordas vocais mágicas. Mas não cantou.

      O Vento, tão traiçoeiro em seu destino, depois de ter recebido os encantos semanais da boca de brasa, depois de ter se chocado entre as folhas para virar as próprias escamas espalhadas no corpo da pobre, foi o mesmo que trouxe o barco até a terra. O mesmo que permitiu que Sereia de Vidro fosse colocada dentro de uma caixa, sua irmã, também de vidro, cheia de água, para todo mundo ver como a luz se refletia em sua cauda. O Vento fugiu e deixou Sereia de Vidro sozinha, dizendo: Beijar, beijar. E cada olhar era mais um beijo. As pálpebras da pobre já eram vermelhas, a cauda se quebrava por pura emoção. À flor da pele, assim era essa flor de vidro. Deixou com lágrimas pelo rosto. Exposta. Deixou que a beijassem, mas deixou tanto, com olhares sobre ela, que passou mais tempo que o próprio raio na tempestade deixando o céu beijar o mar... Sem cantar, por fim, emudeceu. Mesmo com tantas pessoas olhando, não saberia mais seduzir. Não tinha poeira para dançar. Não saberia, assim, cristalizar outra vez.

      Sereia de Vidro foi definhando - em choro, em vida, em poesia, em pó. Afogou-se na própria porção de vidro líquido, que começou a desmanchar dos seus ombros logo após ficar muda. Os homens arrancaram-lhe a cauda antes mesmo de matá-la. As escamas em forma de mariposa, todas que já voaram pelo oceano, formavam um prisma encantado, a luz deveria dividir-se em oito partes dentro da magia delas - eram valiosas. Mas nenhum deles sabia que, apesar dos encantos de casa, o mergulho nunca tinha sido senão desafiador. "Não me deixem beijar" era o que ela teria dito a todas as companheiras de rua oceânica se ainda tivesse voz, se ainda pudesse vê-las. O canto permaneceria fornalha para sempre, isto é certo, mas o beijo, amigos, era a morte jurada para uma Sereia de Vidro.

      Esconda o beijo, Sereia, deixe mostrar apenas a garganta. Afogue-os e faça-os conhecerem a agonia de estarem em suas mãos. Baile de cabelo verde e não pare de sorrir, não pare, não pare enquanto o ar estiver acabando nos pulmões. Mas já é tarde, querida Senhora, ex-Senhora. O mar não é de vidro, quem se quebra é você. Sem tempestade, a esperança no colo do Vento, as estrelas se suicidam tentando fazê-la voltar. Cada mariposa roubada do seu corpo descansará em um esconderijo do mundo, voará até tomar conta do céu e dos mananciais. Será como o seu mergulho ardoroso e perpétuo, e a sua tristeza ainda ecoará nas árvores. Beijou. Até o barco que a transportou se suicidará nas águas profundas, algum dia, qualquer dia... Até os fios de cabelo verde-mato restantes na beira da praia traduzirão a poesia do seu vidro.
Sereia de Vidro.
O mar é seu choro.


(Mariane Cardoso)

3 comentários:

  1. Isso é tão genial... Como é que eu deixei pra ler esse texto só agora? Como é que você não acredita no seu potencial? Qual é o seu problema? Você merece uns choques de realidade. Você vai fazer muito sucesso, Zalu, vai fazer muito sucesso, eu tenho certeza. E eu vou poder dizer que te acompanhei desde o início. Eu vou me sentir tão orgulhos. O mar é o seu choro, com certeza, Sereia. E você sabe quem é.

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  2. Sem reação. Não sei nem o que dizer. Nenhum elogio parece nobre o suficiente para você. Socorra-me, perdi-me nas suas palavras...

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  3. Morro de medo de ler esse texto... Morro. Faz um século que li e ainda não tenho um adjetivo pra dizer o quanto ele me tocou... Ainda tô lutando pra vê se acho.Desculpa pelo mal jeito: você me roubou minhas palavras e me fez sereia por uns minutos.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.