As unhas vivem pretas. Mas uso vermelho acobertando as pernas onde deveria existir luto. Os olhos foram marcados muito antes do espetáculo começar e os brincos chovem até os ombros, escondidos pelos cabelos. A coxia nem é mais assustadora que o meu quarto. É aquele teatro, perto do viaduto onde as crianças dormem em pleno Natal, em que a acústica do ambiente vaza até adormecer. Alguém não tão próximo acaba de confirmar o vazio no instante em que danço na ponta dianteira direita do palco. Eu me concentro nos passos, na ginga, na jogada de cabelo, no vestido que me prende de tão comprido. Dou um sorriso nervoso, faço voo de borboleta com os braços. Monto a tenda, coreografo e sou a bailarina-do-ventre que vira Simun quando os focos são ligados. Simun, o vento árido que varre o Saara, fica nas minhas mãos. Transforma-se nas minhas mãos. Simun é a persistência da minha saia enquanto estou de frente. Mas a partir da porta é outro mundo.
Por que isso, amor? Por que eu não posso ser atriz para sempre, esconder meus olhos na sombra, enveredar pelos caminhos e acompanhar o Pequeno Príncipe no planeta da tristeza? Como não posso ser vento sem fim? Eu moro aqui, aprendo a proteger os olhos, a encontrar água nas veias. E não tenho a rosa. Por que isso?
Subo ao camarim repleto de espelhos. A noite não dá trégua, coração ainda não é de vidro e a verdade é que não virá a ser. Escorro a maquiagem no choro, na raiva, na antipatia. O Pequeno Príncipe era tão leve, meu amor, e eu fiz a sua capa levantar, seu cabelo ondular com os meus braços. Era a própria estrela, aquele menino. Não prestei atenção se era ator também. Mas o deixei sobrecarregado dentro de mim. Estraguei.
Eu sou a dupla face dessa espada que se apressa saindo pela garganta. Pela minha garganta. O que eu procuro é a canção que transforma as crianças poucos metros distantes na própria areia que eu espalho, e os adultos nas lágrimas que eu ajudei a cair. Escondo meus olhos dessa vez, talvez sem validade. Não vejo ninguém indo embora além de mim. Mas, amor, eu continuo a morar aqui. No planeta da tristeza. E a noite... A noite não dá trégua.
(Mariane Cardoso)
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