Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Meinen Frieden



          Mãe, já não sei o que fazer. Por que tivemos que nascer na Inglaterra? Todos muito patriotas de acordo com a palavra daquele farsante que é o Churchill. Não consigo entrar no discurso dele, não consigo pertencer à guerra depois do que ela fez com a nossa família. Desculpe-me, mãe, por estar prestes a escrever coisas dolorosas, mas já não aguento. Queria tanto visitá-la, sair dessa casa e passar a morar aí, mas as estradas estão incrivelmente perigosas, você sabe. Tudo o que tenho é medo. Medo, você e a Sara.
          É por vocês que resisto.
          O aniversário da Sarinha passou e nem pudemos comemorá-lo com a Senhora. Fiquei com o coração na mão, encho de lágrimas os olhos só de pensar que ela já entende das coisas. Sabe o que ela me falou no dia do aniversário? "Mamãe, você já viu aqueles passarinhos barulhentos que voaram algumas vezes por aqui? Será que eu não podia montar em um pra buscar o papai? Eu queria ganhar isso de presente, é muito caro? Eu gosto das suas histórias, mãezinha, mas o papai fazia aquelas caretas e eu achava bonitinho. Sinto falta dele, será que ele volta mesmo? Ou será que ele foi passear procurando o arco-íris?"
          Isso me estrangula. Imagine, mãe, a Sara vive falando que está mocinha. Sete anos e já está mocinha. E a guerra? Cresce como se fosse se transmutar para a vida adulta. Eu nunca pensei que entenderia tanto a sua dor. Eu perdi meu pai, morreram pedaços de mim. Mas nada comparado ao que devia passar aí dentro. Você era a mulher da casa, era a bancada de oração, a força em que eu me apoiava, mesmo enquanto você estava querendo se matar por dentro. Você resistiu. Além disso, era a primeira vez que uma briga desse tamanho acontecia, ninguém sabia se existia saída para aquele inferno, se existia reconstrução para uma desolação daquele tamanho. Tenho muito orgulho de ter saído do seu ventre. Serei forte para preservar a infância da minha filha, mãe? Ela me pergunta demais sobre o pai, não posso deixá-la saber dos perigos, não posso. Sua neta não brinca mais com as meninas aqui da vizinhança, todas muito recolhidas, e nós - as mulheres - sempre atentas aos alarmes. Já recebemos vários treinamentos, mas nunca nos aconteceu de estar em apuros. Só que isso não me livra do sufoco. Choro todas as noites. O Filippo era tão essencial nessa casa.
          O que eu devo fazer? Sustento essa guerra sozinha. Não conto a Sara, não me deixo abaixar a cabeça, dou várias risadas com ela como se tudo fosse voltar ao normal. Mãe... faz seis meses que não recebo uma carta dele. Eu o amei desde que o conheci, você sabe da nossa história, você sabe do quanto eu me trancava no quarto platonizando aquele homem. Você sempre foi minha melhor amiga, sabe o quanto a minha vida estragaria se ele não voltasse. Se aconteceu alguma desgraça a ele, se aconteceu o pior... Não saberei como seguir. Penso na Sara, penso em você. Você sim teve peito para aturar a notícia da morte de um marido. Mas eu... Pelo nome de todos os santos, não sei o que será dessa família sem o Filippo. Ajude-me a orar, reze por nós. Rezo sempre por você também, agradeço por você não ter desistido da vida, por ter me colocado em primeiro plano. Peço que meu Santinho me dê sua coragem.
          A Inglaterra parece ser a mesma daquele tempo negro. Eu via a correria na primeira guerra, vi meu pai entrando no navio enquanto aquele outro moço que era amigo dele tocava gaita, e me falaram que a canção tinha o nome Despedida no título, e eu pensei que ele estava indo buscar tesouros, que ele estava indo enriquecer nossa tão querida Inglaterra, sempre soldado, sempre pronto para defender o que era dele. Mas a Inglaterra o matou. Terra inútil, mesquinha. Levaram o meu pai e agora querem levar o meu amor, o meu Filippo. Levar o pai da minha Sara. Perdoe-me, mãe, perdoe-me. Já pensei em suicídio. Mas não se preocupe, não quero que fique pensando em coisas terríveis como essa. Eu prometo que cuido bem da sua neta. Eu te amo tanto, queria poder te falar isso mais vezes.
          Sara pergunta por você, sente sua falta de verdade. Se você visse como ela está linda. Mas eu estou me sentindo velha, com olheiras, com dores nos punhos. Tenho acordado assustada, conferindo se estou mesmo salva. Levanto quatro vezes à noite para garantir que Sara esteja deitada ao meu lado na cama. Pego a foto de Filippo e penso em meu pai, na dor das mulheres que já vi chorando depois de receberam aquela famosa carta dizendo que Fulano de Tal encontra-se desaparecido. Que tirem esse mal do meu caminho. Eles abafam tudo, eles nos escondem as verdades, falam só que somos privilegiados, que estamos numa ilha protegida, que a marinha é forte e sei lá mais o quê. Quero saber do meu marido. Preciso ter certeza de que ainda temos muita coisa pra viver pela frente. Mãe, fala para mim, ele vai voltar, não vai? Naquela primeira guerra as técnicas eram rudes, mas dizem que agora tudo ficou mais certeiro, mais seguro. Ele vai voltar, não vai?
          Ele tem que voltar. Que direi para minha filha se ele não chegar em casa são e salvo? Que história inventarei? Tão menina, eu já senti isso. Tenho que salvá-la dessa destruição, mãe, tenho que tirá-la dos traumas aos quais eu mesma fui submetida.
          Qualquer notícia que eu tiver dele, avisarei a você. Desculpe o peso todo que coloquei em suas mãos, não queira carregá-lo, mesmo com esse coração enorme que você tem. Também adquiri seu coração depois que tive Sara. Eu só precisava conversar com alguém, e só vejo você me abrindo os braços, mãe. Essa guerra parece que é o reflexo do demônio. Um estrago muito bem feito que todos têm que remendar, sobretudo os civis, os donos da carne e do osso que agora são esquartejados e jogados pelos campos, as pessoas que tinham suas vidas pacatas, sua varanda para varrer, suas crianças para ninar. Preciso dele, preciso dele. Quando tudo isso acabar, quando o Filippo vier, pegarei você e a Sara, vamos morar na América, vamos para bem longe desse turbilhão de catástrofe que acompanha a Europa.
          Sara manda beijos, diz que fez um pedido para te ver sempre bem. Amamos você. Em breve, com toda a fé, nos veremos novamente. Por favor, proteja-se. Não deixe que os monstros de ambos os lados cheguem perto da Senhora. Prometo que ainda pedirei sua bênção de perto. Cuide-se.

(Mariane Cardoso)

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.