Eu apenas queria que soubessem, o Igor nunca esteve tão vívido. Se me deixassem fazer sua vontade, o quarto monótono estaria repleto de pequenos frascos de papel, cada um deles de braços abertos para uma flor murchante que o Igor promete trazer e salvar, ressuscitar no último segundo. Eu monto muitos vasinhos com papelão, incansavelmente, mas ainda assim faço a parte mais fácil. É o Igor quem mergulha para trazer a respiração à tona. No entanto, retiram do chão os inúmeros recipientes improvisados que deixo, falam que eu não posso encher o quarto dele de papelão porque é impróprio para um ambiente hospitalar, anti-higiênico e sei lá mais das quantas. E não adianta falar que é o Igor quem quer. Eles acabariam proibindo minhas visitas e eu sou a única que ainda consegue ouví-lo. Só as flores murchantes nos agradecem.
Ele e eu já tivemos alguém no mundo, mas não agora. Os tempos são outros; os gestos, os milagres são outros; e também serão outros quando ele acordar. Certamente, mais cruéis e descrentes. Tenho medo da reação do Igor, estático no tempo já incerto, acompanhante dos delírios daqueles que nunca tiveram receio de se entregar, mas na década deslocada em que os trabalhadores são pontuais, os relógios são quantizados na Bolsa de Valores e os olhos se voltam para o chão, cansados de olhar o céu. Nunca houve espaço para a nossa poesia, Igor, nunca. E, quando você acordar, será pior. Porque a distância para o solstício de inverno vai ficando mais derretida a cada dia. Os selvagens vão sendo engaiolados e soltos serão apenas os invisíveis. Vai secando o leito em que poderíamos dormir, vai falecendo, putrificando. As flores, antes, tinham até cinco pétalas. Hoje são só três. Eu me sinto impressionantemente sozinha com o seu silêncio, o corpo me lembrando a cada olhar uma morte diferente, mesmo sabendo que o coração ainda bate, que a persistência é bem típica nas suas mãos, nas mãos de um acelerador de milagres. Mesmo sabendo que é tudo proposital, que você volta a qualquer hora, assim que salvar as flores. Eu me sinto esquecida, porque nós não somos invisíveis. Somos o grito.
Depois do acidente que o deixou completamente parado nessa cama, pensei que nunca mais teria companhia. Pensei que estaria, agora sim, eternamente perdida na solidão do mundo. Pensei no quanto seria trágico e desesperançoso - mais que isso, abafado - continuar com os mesmos sonhos e as mesmas promessas. Pensei no aquário que montamos, de vidro cor-de-insanidade, onde plantaríamos um baobá, para ver até quando a insanidade resistiria à natureza, para ver até que ponto as raízes seriam mais fortes que a loucura. O tempo de estar em coma poderia, sem dúvidas, ter me deixado louca. Esperar dia-a-dia o Igor me chamar com voz rouca e fraca, como se estivesse apenas acordando de um cochilo de fim de tarde, mas estando inconsciente há aproximadamente sete meses, poderia me quebrar em pequenas partes como se quebra um galho seco. E eu juro que demorei para entender o que acontecia. Passei semanas sendo apenas os olhos vermelhos que encharcavam o rosto do Igor enquanto ele se vestia de vazio. Sem nenhuma palavra, sem nenhum consolo em minha direção, nenhum esforço para mover os lábios. Mas entendi.
Entendi quando as flores começaram a ser trazidas de volta.
Todas com cinco pétalas.
Foi desse jeito que aprendi a fazer os vasinhos de papel. Eu tinha que esperar, porque era um pedido das flores. E as flores jamais podem ser deixadas para depois. Jamais. Mas ninguém acreditaria em mim. O Igor se propôs a cumprir a promessa. Ele sabia de tudo o que estava acontecendo, fez tudo como planejou, arquitetou a própria liberdade e a iluminação do aquário antigo. Entendi no final da tarde da terceira semana do terceiro mês, quando o vento trouxe consigo uma flor amarela de cinco pétalas e a largou no meio do quarto, no chão vazio. Eu não sabia que precisava fazer os frascos, não ainda. Mas o sinal havia sido dado. O Igor iria salvar as flores, uma a uma, e era preciso ficar invisível antes, para gritar só depois. Era preciso confiar na linha tênue que separava o inconsciente da morte, confiar no silêncio pairando por cima das nossas cabeças e na incoerência que me sobrava, pois eu não era capaz de convencer ninguém de que o Igor estava bem mais forte e mais ativo do que nunca. Ágil. O Igor estava capturando as murchantes e colando as pétalas como se o suor fosse o único analgésico de uma primavera falida.
As flores iam recuperando seu espaço no mundo em troca da voz dele. E viajavam perante minha esperança como se o tempo voltasse para ficar. Como se houvesse tempo. Como se houvesse lugar para a gente morar com a nossa poesia debaixo do braço. Como se as coisas começassem a funcionar outra vez.
Todas as pessoas ainda choravam por conta das condições dele. Começaram a chorar por mim também, achando que eu havia ficado doente. Desvairada, para ser mais específica. Éramos apenas ele e eu como cúmplices. E eu sabia que no início da primavera todas as murchantes estariam novamente com cinco pétalas, porque o Igor materializava a estática em forma de flor. Há alguns dias eu pude sentir pela primeira vez o perfume. Igor nunca esteve tão vivo, tão heróico. Ele demora, pois existe um exército inteiro de murchantes para serem desenterradas e trazidas à tona junto à consciência dele. E tudo virá de vez. E tudo virá inebriante. E tudo virá fatal. Acreditem em mim. Daqui a pouco, as flores estarão ressuscitadas.
E tudo virá sem volta.
(Mariane Cardoso)
Foi desse jeito que aprendi a fazer os vasinhos de papel. Eu tinha que esperar, porque era um pedido das flores. E as flores jamais podem ser deixadas para depois. Jamais. Mas ninguém acreditaria em mim. O Igor se propôs a cumprir a promessa. Ele sabia de tudo o que estava acontecendo, fez tudo como planejou, arquitetou a própria liberdade e a iluminação do aquário antigo. Entendi no final da tarde da terceira semana do terceiro mês, quando o vento trouxe consigo uma flor amarela de cinco pétalas e a largou no meio do quarto, no chão vazio. Eu não sabia que precisava fazer os frascos, não ainda. Mas o sinal havia sido dado. O Igor iria salvar as flores, uma a uma, e era preciso ficar invisível antes, para gritar só depois. Era preciso confiar na linha tênue que separava o inconsciente da morte, confiar no silêncio pairando por cima das nossas cabeças e na incoerência que me sobrava, pois eu não era capaz de convencer ninguém de que o Igor estava bem mais forte e mais ativo do que nunca. Ágil. O Igor estava capturando as murchantes e colando as pétalas como se o suor fosse o único analgésico de uma primavera falida.
As flores iam recuperando seu espaço no mundo em troca da voz dele. E viajavam perante minha esperança como se o tempo voltasse para ficar. Como se houvesse tempo. Como se houvesse lugar para a gente morar com a nossa poesia debaixo do braço. Como se as coisas começassem a funcionar outra vez.
Todas as pessoas ainda choravam por conta das condições dele. Começaram a chorar por mim também, achando que eu havia ficado doente. Desvairada, para ser mais específica. Éramos apenas ele e eu como cúmplices. E eu sabia que no início da primavera todas as murchantes estariam novamente com cinco pétalas, porque o Igor materializava a estática em forma de flor. Há alguns dias eu pude sentir pela primeira vez o perfume. Igor nunca esteve tão vivo, tão heróico. Ele demora, pois existe um exército inteiro de murchantes para serem desenterradas e trazidas à tona junto à consciência dele. E tudo virá de vez. E tudo virá inebriante. E tudo virá fatal. Acreditem em mim. Daqui a pouco, as flores estarão ressuscitadas.
E tudo virá sem volta.
(Mariane Cardoso)
Mari, sou a flor que ainda não soube como desabrochar.
ResponderExcluirTe agradeço por tudo, tudo! És sim, uma pessoa com quem eu queria abraçar forte e dizer "obrigado".
Obrigado, obrigado!!
Menina :3