Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Marte em Aquário ou Febre do Rato

     Ele me disse que a linha da vida era profunda, caminhando até o monte da Lua, numa conversa aleatória e simples. Desde então, a sacada que ninguém mais poderia arrancar de mim era a de que um simples apertar de mãos desviaria meu astro do seu curso natural. Era o meu ego que havia se formado.

     Mas ele ainda deitava sobre meus seios e permanecia lendo em voz alta, como quem não quer nada de mim. Como quem não se importa se é real. Como quem gosta dos sabores intoleráveis e das desilusões intragáveis.
  
"Pobre e amputada humana cujos olhos morreram na infância.
Preparada para o mundo de pupilas retraídas às avessas.
Oh, eu já havia caído dentro da tempestade de palavras e imagens
para sempre sugada pelo redemoinho descontrolado
de minha lucidez.
Nasci no tempo de hegemonia do olhar
pois estamos sós e impermeáveis,
nos afastando pouco a pouco
cisco a cisco
da essência da vida.
Encantados com o reconhecimento do espelho
sem a malícia de agarrar com unhas e dentes
os cheiros, os sons
os sentidos que realmente nos encaixavam com a alma das coisas.
Deixemos do lado de fora tudo aquilo que nos bloqueia,
o que nos dá percepção do que é alheio
deixemos junto ao mofo.
Estamos absortos em nossa própria imagem,
sem a decência de usar as pálpebras para sonhar."

     Depois ele se ajeitava por cima de mim. Já havíamos aprendido a dominar a falta. O meu pulso, o meu pulso que era rígido, mas de pele fina, ainda tinha a veia pulsando azul. Como quem bebeu da leptospirose poética e desprezada. Uma inquietação, uma ânsia, um toque de psicose. O livro que pairava aberto sobre minha barriga.

"Mas quando te olho"
Ele continuava.
"Quando o oceano da tua íris
desfragmenta-se em tons pastéis
como se fossem favos
escravizados na mandala do teu globo,
estou tentando driblar as leis do universo,
mendigando como uma criança assustada.
Quando te olho não queria reconhecer
teu corpo fora do meu.
Eu, que já firmei-me caída e inominável no abismo.
Quando te olho, tensiono te encontrar.
Mas é assim que, finalmente, te perco."
      
     E já que ficava a aura do que era dito e não somente visto, eu tinha que sentir. Tudo o que o som desesperava dentro de mim -inominável-pálpebras-favos- penetrando no ouvido. E a sua pele que escorria em volta das minhas pernas. Uma leve obsessão. Eu pensava em tudo o que poderia ter sido. Tudo o que não. Eu queria ser outra pessoa depois de você. Mas o olho. Mas a febre do azul. Mas.

     A minha linha da vida. Ela era profunda e caminhava até o monte da Lua.

Mariane Cardoso

2 comentários:

  1. Tenho um novo favorito, Mari. Parabéns pela falta de fôlego (a que eu senti enquanto lia). Você é brilhante.

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  2. Te li e transbordei. Quanta saudade de poder escrever e de passear pelos blogs que sigo, me embebedar de palavras e sorrir no fim. <3


    E por falar em palavras, tenho um grande carinho onde guardo as tuas.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.