Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

     Porque antes do milagre existira a dor e a proximidade da descrença. E antes que se pudesse observar a grama crescendo, o gelo havia coberto as terras com seu branco-morto-polar onde ninguém se atrevera a dizer que qualquer traço de cor surgiria, que qualquer essência de flor brotaria. É o inverno, amor, como uma bruta folha de papel. Que por sorte ou persistência, ou até mesmo covardia, vai deixando de ser puro. Afinal, como criar um poeta sem antes fazê-lo entender todas as misérias do mundo?

      "Quanto tempo você acha que as margaridas vivem"? "Elas vivem até o dia em que o sol não viver mais". "Tão covardes quanto nós". "..." E então trocava o canal da TV, abaixava o volume em um tracinho: "Muito baixo". Aumentava novamente: "Muito alto".

      Desde então cada pedaço existencial parecia-me desconfigurado e imerso no caos. Em minha cabeça, alguma satisfação obscura por ter finalmente compreendido o belo no interior de todas as partes mofadas. Tristeza pode ser a estampa floral do meu vestido: blue, baby blue... Azul como as camadas sobrepostas de mar, com riscos pastéis baseados no efeito sépia de qualquer foto antiga. Tristeza pode ser uma serenata de voz rouca na madrugada de quinta. Ou a cicatriz no braço que mais parece uma coroa. Até o quadro mais caro do mundo teve tristeza como matéria-prima.

     "Quanto você pagaria por um livro meu"? "Nada. Eu o roubaria". "Não deixa de ser uma possibilidade de pagar com a própria vida, amor. Você sabe, taquicardias, arritmias, melancolias". Depois ríamos. Isso dentro da nossa própria angústia. Era mentira qualquer impressão de festa e o meu vestido desbotaria a cada nova primavera. A tristeza, enfim, era uma amante esperta que se encaixara perfeitamente em nossos braços.

Mariane Cardoso

6 comentários:

  1. Você escreve com maestria, pequena. Você é linda!

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  2. Ah, Mari... às vezes você me dá a sensação de "tocar nas palavras sem tocar" entende? Eu tento, tento, mas não consigo explicar o que é isso. Mas é algo muito bonito (e raro). Que coisa linda.

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  3. Seus textos estão cada vez melhores, é sempre bom vir aqui. E amei ver Cat Power e Mumford & Sons na sua playlist, é difícil encontrar alguém que também ouça.

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  4. Continue dizendo que você tem magia aí dentro, Mari. E isso vai transbordando.

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  5. Isso é tão lindo. É incrível a sua sensibilidade, como se tudo viesse pra afundar e a superfície mais imaginável seria o centro da Terra, o mais fundo que conseguimos perceber. E você sabe exatamente que o chão não é o fim, mas um portal pra algum lugar inexplicável que sentir é tudo o que realmente temos.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.