Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sexta-feira, 6 de julho de 2012

      O abajur ainda aceso, ao lado da cama, acima dos olhos, é indispensável quando os relógios são seguidos por você. Antes do interesseiro sono, do prazeroso e indestrutível sono, é insubstituível que se mantenha em chama o lapso, que a cabeça no travesseiro lateje e demore pesada. Que a cabeça estática não durma ainda, porque depois nada mais será pensado como há um dia antes. E é importante também que as passagens estejam garantidas. Nunca se sabe quando voltar atrás é tarde demais.

      Há muita história triste espalhada por aí, você me diz com todas as letras que é substancial, s-u-b-s-t-a-n-c-i-a-l eu saber. Um dia ele caiu da motocicleta tentando desviar de uma criança que correu para a rua. Foi direto no meio-fio. Quebrou o pescoço. Os irmãos da mãe tiveram que revezar para dormir na casa dela porque tinham medo de deixá-la sozinha, isso além dos remédios controlados que ela tomava e toma ainda hoje. Tinham medo do que ela seria capaz de fazer. Você sabe, é muito perigosa a mente de quem ama. E ela era uma mãe que não tinha admitido ficar enquanto o filho ia embora.

     — Você os conhecia?
     — Sim, conhecia. Mas houve outro, o antigo dono da barbearia.

    Gostava de apostar no jogo do bicho, bebia muito toda noite. A mulher tinha o abandonado já havia três anos por outro cara, mais novo, jaqueta de couro, pé 42, cheiro de uísque. E, de quebra, ela também deixou a filha com o marido, uma garota de 13 anos na pior fase da rebeldia. Houve um dia em que a filha chegou em casa, às seis da tarde, e ele não estava mais lá. Tinha deixado mil e duzentos reais debaixo da lata de leite em pó e um papel grudado no ímã da geladeira, escrito "Livre agora, amo você"...

     — E o que aconteceu com ele?
     — Não aconteceu. Esse eu inventei.

     Melhor assim sem conhecer, sem inventar o final, sem roubar uma vida por uma história. Só por hoje não ser cruel, mesmo sabendo que perco o seu amor quando não morro. Porque é isso que esperamos, ainda ser um pouco atriz, sonhadora e vampiresca, sugando os fatos pra te contar as coisas que acobertaram de nós pelo bem fraterno, pela harmonia geral. Depois disso meu coração fala mais alto. Mas não significa que ele tenha falado baixo durante todo o antes. Oblíquo, é isso o que se fala sobre o meu coração.


     Talvez as luzes néon se apaguem enquanto tentam entendê-lo, mas não é por capricho, e sim por insuficiência: é absoluto estar junto aos esquecidos que não querem ser encontrados. As entranhas que hoje transparecem não sabem falar em voz baixa. Nunca mais ponderar o que se é. Isolar-se, quem sabe, para os surdos, mas nunca esquecer de gritar. Há construções pós-contemporâneas no meu coração. E as passagens precisam estar garantidas, o passado é uma roupa que não cabe mais, tangerinas estragadas, filmes com ranhuras, não nos deleita mais.


     É substancial, lembre-se, é s-u-b-s-t-a-n-c-i-a-l você saber que um dia eu também quis ficar. Mas hoje entendo que o tempo gira, como giram os cata-ventos incolores e os girassóis mesmo antes do último pôr-do-sol. Não é à toa que os ponteiros também foram feitos para girar. Meu coração é uma cidade debaixo de outra cidade, debaixo de outra cidade, debaixo de outra cidade...


      Estamos sempre na iminência de enterrar.

Mariane Cardoso

2 comentários:

  1. Nunca se sabe quando voltar atrás é tarde demais.

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  2. Acho que esse texto é um dos meus favoritos. É muito, muito bonito. Tenho até vontade de imprimir pra sempre ler, pra absorver tudo. Nossa.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.