Já não colo pôsteres na parede, Gustavo. Nem escondo os pés debaixo do edredom quando o frio tenta me assustar. Eu prefiro deixar. Atentar meus ouvidos assim que apago a luz e refazer o trajeto do cara do andar de cima, que arrasta os móveis toda madrugada e caminha como um destemido pelo piso de madeira barulhenta. Às vezes ele fica em cima do meu quarto e eu confundo suas passadas. Me encolho na cama e espero que ele vá embora, porque fica parecendo que ele está dentro da minha casa, vasculhando minhas fotografias antigas e resgatando minhas anotações perdidas. E eu tenho muito medo de me descobrirem, cara. Não tenho história nenhuma, missão nenhuma, mas alguém eu sou. E só por ser, já não podem me descobrir.
Mas, apesar disso, tenho tomado asco de tudo. Vejo só a superficialidade e isso realmente me sufoca. Ando esquecendo de tomar café da manhã, tô com muito tempo livre. Porque eu não produzo todo o tempo. E fico caçando um filme, um livro, uma sinfonia mais crua que eu, alguma loucura maior que eu, uma epifania além de mim. Como se eu procurasse, afinal, a voz de pardais que brotava da nossa pele quando éramos crianças, quando qualquer informação banal servia de inspiração pra sonhar. Quando pegávamos os pedaços de carvão e decidíamos pintar meu joelho pra esconder a ferida, que sangrava incessantemente depois que eu escorregara e caíra na quina da escada. Quando acreditávamos no que era fácil e quando as nuvens ainda se metamorfoseavam em ovelhas, cachorros e insetos.
Agora não me sinto tão pura, Gustavo. Ir aprendendo enquanto cresce é uma espécie de violação. Se o mundo fosse uma mulher, ela já teria aberto as pernas pra mim. E não me sinto mal por isso. Talvez seja a forma de amor profunda e obscena que liga todos os átomos. Eles se reconhecem e se conhecem quanto mais se encontram. É por isso que acumulo. Toco nas letras do teclado e formo montes de anotações inconscientes dentro de mim. No entanto, há épocas do ano em que a consciência é tangível. Você também percebe isso? Há épocas em que reconheço o que já sei e dessa maneira não o quero mais. Fica difícil me distrair. A sede me atormenta. Parece que nada me toca, que sou um estátua de mármore fixada dentro de um cubículo obscuro, onde o vácuo me faz companhia. Aí quero saber sobre os assassinatos na Idade Média, a fome que sua cantora preferida passou e ouvir toda a linguagem chula que você pode me oferecer. Como se eu preferisse ultrapassar minhas próprias barreiras. Te fazer ouvir além da proteção. Mas ainda sou a mesma menina por quem você já se apaixonou.
Porém, é tarde. O homem pisoteia lentamente o teto do meu quarto e eu não quero levantar da cama para expulsá-lo de casa. Porque eu quero sentir esse medo. Preciso tentar ser fria e contida ao ponto de adormecer enquanto há um estranho coletando toda a minha vida nas lembranças que espalho. E fico feliz quando consigo, cara. Depois que amanheço no dia seguinte e fui corajosa por não me esconder. Mas nessa noite eu tive um sonho, e no sonho eu me inclinava sobre a janela de casa, via alguns cavalos de pelos brilhosos castanhos e cristas lisas, e eles comiam suas cartas que brotavam do chão como meros capins.
E mesmo assim eu permanecia tranquila na janela de casa, vendo suas palavras serem mastigadas por eles. Depois os cavalos começaram a mudar de cor, surgiram pelos brancos como se eles estivessem envelhecendo na minha frente. Como se o Tempo me provocasse a qualquer custo para que eu temesse alguma coisa nesse mundo, mas eu continuava tranquila. Até que os cavalos perceberam que estavam ficando brancos e começaram a correr pra longe de mim, Gustavo. E, montado em um deles, estava você, com os cabelos compridos e os olhos lacrimejantes, tentando parar o animal e gritando meu nome. Os cavalos trotaram até um espelho enorme do outro lado da rua, e entraram ali, e levaram você pra lá. Gustavo, eu ainda estava tranquila. Então me olhei no espelho, eu era uma mulher madura, na flor da idade, o cabelo cortado nos ombros, os seios médios que eu já não tenho certeza se caberiam nas suas mãos como cabiam quando eu era mais jovem, as coxas mais grossas e ainda aquela cicatriz que ficou no joelho quando você tentou ajudar a apagar.
Mas, prestando atenção no meu rosto refletido, havia uma lágrima. Sim, uma única lágrima que a mulher que um dia eu serei deixou escorrer. Dentro dessa lágrima, Gustavo, eu vi a garotinha. A garotinha que um dia eu fui. E ela chorava compulsivamente, sentada na calçada e amplificando sua dor nos gritos. Então compreendi. Aquela única lágrima carregará todo o peso das outras lágrimas que deixarei de chorar.
Mariane Cardoso
E é assim, enfrentando os medos e destemendo a morte, que um escritor deve ser.
ResponderExcluir"Não tenho história nenhuma, missão nenhuma, mas alguém eu sou. E só por ser, já não podem me descobrir."
ResponderExcluirQue texto massa!! Eu espero que você siga esse caminho da escrita, e ser uma maravilhosa escritora. Você tem muito talento! :)
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