que dissemina pelo solo até contaminar o que de mais essencial pode ser alcançado. Quando chegou a Santiago adorava o frio, porque a boca ficava meio azul. E azul sempre combina, segundo ela. Tinha uma cicatriz embaixo do queixo de uma queda infantil, da época em que não aprendera a correr, pois o risco nunca era suficiente para frear. O cabelo descuidado nunca incomodava, pois o que a deixava atraente era a falta de sonhos. Mas o que chamava atenção de verdade era o exagero e a coragem, duas coisas que talvez nunca vivam separadas, que talvez nunca deixem de viver dentro dela. Gostava de andar descalça quando morava perto do mar e se banhava sozinha nos dias em que o vento era forte. Já se afogara três vezes, mas sempre mergulhava completamente na água gelada. Só nunca viu a neve e agora vivia na cidade que não poderia lhe oferecer o que não era sonho.
- Eram as minhas fotografias de inverno, aquelas que você jogou fora junto com os seus trapos. - E dizia isso lambendo meu queixo de um jeito que me tirava a concentração.
- É inverno agora. É seu tempo certo de viver, clandestina.
- Mas nunca há neve em Santiago, meu bem.
- Quem sabe. Nunca é muito forte. Mas há neve eterna nos Andes, a gente pode pegar as mochilas.
- Eterna não é muito forte?
- É eterna. - Eu colocava a mão por baixo da sua blusa já que queria roubar seus argumentos, mas ela sempre me vencia.
- Não por muito tempo, clandestino.
"É o que dizem as pessimistas como você", mas eu preferia morder sua boca. Quando a gente chegou com a promessa de nada, nos divertíamos mais. Não que agora esteja ruim. Na carteira de identidade o nome dela é de personagem de poesia, e eu não lembro mais o nome verdadeiro, nem ela, por conta do tempo e dos destinos que nos atrapalham. O nome só não era amor. Nem o meu. Mas só porque os sonhos tinham nos matado. E amor é pros vivos. Assim, nesses dias em que nenhum dos dois saía do apartamento escondido de fim de beco, ficávamos no sofá até escurecer trocando apelidos muito mais perigosos do que amor. Ela pegava nossa falsa certidão de casamento e fazia dois furinhos no papel com a ponta do cigarro. Ninguém mais nos conhecia. Os vizinhos eram o tipo gente que deixa a porta fechada o dia inteiro com um trinco que qualquer um pode quebrar, enquanto as nossas portas e janelas eram abertas até um dos dois desistir do incrível frio.
- E Puerto Varas?
- Muito longe de nós. - E ela estava certa. Era muito longe mesmo, lá pro sul, embora eu não soubesse se ela estava respondendo minha pergunta ou repetindo o que ela sempre dizia depois que terminávamos de fazer amor. O amor que não era pronunciado em amor, que era o ultimato pra eu não desistir. Um dia seríamos perto.
- Poderíamos conhecer o vulcão.
- Osorno?
- Poderíamos dançar salsa e enfurecer o vulcão. - Eu dizia e ela me dava um soco fraco no ombro.
- Claro, até nos jogarmos lá dentro e sairmos do outro lado do mundo.
- Você sabe onde é o outro lado do mundo, foragida?
- ... - Ela ria pra mim e em seguida fazia cara de sono. Pensava um pouco enquanto enrolava minha barba comprida nos seus dedos de unhas curtas. Depois me encarava com seriedade e toda vez que isso acontecia eu sentia que era saudade. Saudade de alguma coisa que a gente não podia ser. Fixava os olhos claros em mim e suspirava - O outro lado é fora de casa.
- Estamos fora de casa há muito tempo.
- Não precisamos de casa. - Dizia e deitava no meu peito me mandando calar a boca com um gesto. E era assim que eu sabia de que era a saudade.
Tinha um país inteiro e frio lá fora esperando e ela sabia que conseguiríamos nos virar de qualquer jeito. Ela tinha coragem e exagero suficientes para me acompanhar por qualquer parte do mundo. Havia muita neve para ser pingada na ponta da língua. Muita costa a ser explorada, sentar nas pedras e tirar novas fotografias de inverno para repôr no lugar de todas as outras que necessariamente são jogadas fora. E éramos jovens, desconhecidos e também desencontrados, sem compromissos e sem lei que fosse a nosso favor. Ela tinha o sotaque mais bonito que eu já havia conhecido. Ficava passando o rosto pelo meu peito, bem o lugar onde ficava sua cicatriz, até perder a visão e dormir. Eu sabia que ela era uma exploradora nata, como o mercúrio que penetra e nunca mais é esquecido. A única coisa que a fazia ficar, que me fazia ficar, era decerto algo que descobrimos no azul. Era a saudade de nunca termos sido sonhadores.
Mariane Cardoso
texto para um amor que vai partir, queria muito ler seus sentimentos sobre.
ResponderExcluirE você, feiticeira, mais uma vez me fazendo suspirar. Me identifiquei, tremi e me encantei Você sempre mágica, mô. Amei.
ResponderExcluirQue lindeza, como sempre...
ResponderExcluirGamei! Simplesmente lindo.
ResponderExcluirClareza nas palavras, profundo no sentimento!
Parabéns :)
Ler isso numa noite de insônia foi mágico...
ResponderExcluirTudo o que tenho a dizer é que espero ansiosamente pelo lançamento de seu livro.
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