Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A Desconhecida Companhia de Pintores Cegos

     Ao vivo no teatro com os focos de luz fixando bolas de brilho no piso de madeira, os quatorze pintores sentados em fila rastejando os pincéis em suas telas, os violinos de fundo fazendo meus cabelos vibrarem e meus olhos parecerem velhos. Eu estava simples e assombrado na platéia. Os do palco, todos de preto. Mas havia uma mulher, a primeira da fila de pintores, que usava um vestido vermelho e que encarava os espectadores como se pudesse ver não só os rostos, mas também os segredos e as angústias que pairavam sobre as cabeças de vida difícil. Me revirou por dentro diversas vezes até que eu ficasse com náusea, ela era a única também que não pintava. Suas íris eram brancas. E distantes.

     Havia pouco mais de vinte pessoas assistindo. Vou dizer o que me aflige: Foi o meu rosto que apareceu nas telas ao final da cena. O MEU ROSTO. Muitos da platéia vaiaram e foram embora dizendo que tudo era uma grande trapaça, que foram todos enganados e que não havia nenhum cego. Mas minha náusea forte não me deixou sair com rapidez. Fui o último. Assim como sou o último a dormir todas as noites. "Apenas eu. E fico remoendo todos os meus trejeitos e a minha dureza quando se trata de buscar minha segurança". E, desde aquela noite, eu perco a hora de ir embora.

*

      — Eu tenho o rosto marcado por seus olhos de poço perpétuo. — Foi em abril, dois meses depois, que eu encontrei a mulher de vermelho na rua, sozinha dobrando a esquina do sobrado abandonado, e a segurei pela mão porque queria respostas.

      — De onde você veio, para onde você vai, o que você quer, quem é você? Blá-blá-blá. Eu sou a tela. Você anda me procurando porque seu rosto já foi pintado numa das apresentações, não foi?

     — Sim. Era o meu. Eu não sei. Eu não consigo mais dormir, moça. Você... Você e os outros quatorze são mesmo cegos?

     Ela gargalhou. Gargalhou e girou sobre os calcanhares repetidas vezes, como se fosse dançar. Como se fosse maluca. Depois parou em frente ao meu rosto e abriu os olhos com os dedos, esticando a pele com força, um sorriso demente nos lábios. As íris brancas zanzavam entre demoníacas e angelicais. E eu... Eu devia mesmo ser desvairado. Eu fiquei excitado com a mulher de vermelho que liderava o misticismo da noite de pinturas cegas pelo jeito que ela rodava o corpo na calçada esburacada. Ou pelas íris que me lembravam gozo.

     — Acha que posso não ser cega? Acha que eu posso dizer quem é ou não é cego?

       Eu afastei os braços dela para que tirasse as mãos dos olhos, mas precisei de muito esforço, pareci ridículo e infantil testando meus próprios músculos e minha capacidade de suportar as reações dos outros:

     — Como posso entender o que vocês fazem com as pessoas e com os quadros?

     — Encoste sua boca na minha.

     — O quê?

     E ela permanecia tranquila e áspera como uma estatueta: Encoste, foi o que ela repetiu. Cheguei perto e levei os lábios até sua pele fina e vermelha da boca.

     — Sabe, meu rapaz, — Ela falava e eu podia sentir sua voz ecoando dentro da minha boca, me invadindo mais do que em seu mistério, me fazia prestar atenção no corpo. E eu gostava disso. — eles são capazes de ler tudo ao redor. Não é frustante?

      — Eles quem?

     — Os cegos que descobriram seu rosto. Quantos foram?

     Eu ia só cedendo às perguntas que ela me fazia, tão acessível como um cachorro:

     — Todos. Todos os quatorze tinham as telas com o meu rosto.

     Esse foi o único momento em que ela me pareceu desencontrada de todas as vezes em que eu já a tinha visto. Pensativa, enquanto eu era aflito. Desencostou o rosto do meu, mas não sem antes deixar sair dos lábios que não conhecia minha fisionomia, mas minha boca sim. Catou um isqueiro do bolso e suspendeu entre nós, acendeu uma chama diante dos seus olhos brancos e dos meus olhos velhos. Sorriu como uma maníaca de novo.

     Depois separou uma mecha fina, abaixou o isqueiro e ateou fogo no próprio cabelo.

     — COMO UM QUADRO À TINTA GUACHE E SANGUE QUENTE. COMO UM QUADRO À TINTA GUACHE E SANGUE QUENTE. — Ela cantarolava histérica enquanto a mecha carbonizava. Não encontro descrição para o que senti. Paralisado. Não fiz nada. Ela apagou a chama com a mão quando metade da mecha  já estava queimada, e suspendeu o cabelo com cheiro de inferno na direção do meu nariz. — Você sabe o que é isso? É esse o seu rosto e o meu rosto. E todos os rostos são iguais à tinta guache e sangue quente.

     Me olhou com aquele gozo de íris.

     E em seguida chorou.

     Soluçou no meu pescoço na calçada esburacada.

*
  continua

Mariane Cardoso

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.