Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Que Horas Seriam?

     Sei apenas que o céu estava escurecido há algum tempo e que, quando ele sentou no banco, ela estava sentada há pouco tempo. Na verdade, podia ser muito tempo. Podia ter se confundido com o pôr-do-sol, podia ter quebrado as barreiras da contagem, mas isso foi há algum tempo e eu já não tenho certeza. Não importa o tempo. Sei apenas que eles sentaram e ambos tinham algo renascido no olhar, mas uma sensação de perda era emanada. E isso eu descobri porque nenhum dos dois falou nada a respeito durante toda a conversa. Aliás, é assim que se descobre as informações mais importantes. Eu achei que eles eram as entrelinhas, principalmente porque nenhum dos dois tinha relógio. Ou porque a rua estava ficando deserta na melhor hora das estrelas. Ou porque o resto dos bancos estava vazio sentindo inveja de um só banco sustentando dois humanos esquecidos pela cidade.
     - Quer um cigarro, moça?
     - Não, eu não fumo.
     - Ah, sim. Nem eu.
     - Mas tem cigarro aí?
     - Tenho.
     Eu queria ter entrado na conversa nessas horas em que ninguém falada mais nada, pois nessas repetidas vezes fiquei com a curiosidade à flor-da-pele. Mas eles sempre desistiam antes, talvez por cansaço, ou por acharem que havia coisas mais importantes a se falar, ou por acharem apenas que não era importante falar. E quem sabe eles se entendiam, parecia que sim. É que eles eram vagos, amedrontados. Quase sozinhos. Foi o que eu pensei e ainda penso. E me faltou coragem pelos dois.
     - Você sabia que os animais não se suicidam?
     - Se suicidam sim, moça. Uns bichinhos... Eu esqueci o nome agora. Uns roedores na Escandinávia, eles cometem suicídio coletivo, se jogam de penhascos.
     - Descobriram que era mentira.
     - Foi?
     - É... Quando um cai de um penhasco, todos pulam atrás, entende? Porque eles andam seguindo os que tão na frente. Porque são burros. Aí morrem todos de uma vez só.
    - Então agora é provado que apenas os humanos são capazes de suicídio? - Foi nessa parte que ele acendeu o cigarro.
     Ela balançou os ombros e ficou olhando fixo para a árvore ao lado. E todos os espaços de fala eram tomados por um esticado silêncio que me dava a impressão de que finalmente os dois tinham se desencontrado. Mas sempre recomeçavam do nada. Eu só não sabia quanto tinha que esperar. 
     - Você acredita em extraterrestres, moça?
     - Aham.
     - Teve uma vez que 39 pessoas se suicidaram na Califórnia. Isso porque acreditavam em extraterrestres também. Foi nos anos 90, quando um cometa lá estava com a maior quantidade de luz possível.
     - Talvez tenha alguma ligação.
    - Dizem que eles queriam passar para o próximo nível. Mas ninguém, nem eles, teriam a certeza de um próximo nível. A graça toda é essa.
     - Você tem medo?
     - Acho que sim. A gente nunca vai ter certeza, né?
     Ele sorriu um sorriso quase triste e ela abaixou os olhos, ficou mexendo nas pontinhas dos dedos, olhando as unhas. Podia estar concentrada pensando em tudo. Podia estar fugindo dos pensamentos. Podia estar no outro nível, fora de nível, desnivelada, quando foi interrompida por ele.
     - E você?
     - Oi?
     - E você?
     - Eu tinha certeza que sim antes de falar sobre extraterrestres.
     Nessa hora eles pareceram mais felizes do que o possível. Eu fiquei feliz. Mais feliz do que o possível. Só por poucos minutos, esse foi o meu receio. Eu sentia que eles não conseguiriam se manter se fosse num nível diferente, sorrindo daquele jeito. Eles estavam em uma noite para serem constantemente abaixo das estrelas, sem brilho. Ela inclinou a cabeça até o rosto ficar virado para o céu. Achei que ela iria falar de cometas ou procurar alguma espaçonave solitária, ou um imprevisível congestionamento de espaçonaves invisíveis, e iria soltar mais uma de suas frases desconexas que combinavam tanto com as frases desconexas dele. Mas ela não falou mais nada daquilo, foi falar do que via:
     - A lua daqui parece a lua de Estocolmo, não acha?
     - Já esteve lá? - Ele também virou o rosto para o céu.
    - Não. Mas a Lua de Estocolmo deve ser como a Síndrome de Estocolmo, quando a gente começa a amar um pouco quem nos coloca em risco.
    E, sem dizer se também gostava do brilho do céu, que era quase o brilho do cometa, que era quase o suicídio de trinta e nove pessoas, que era quase perceber a falta de um relógio, ele apenas confirmou, quase sorrindo:
     - Parece a lua de Estocolmo.
     E foi nessa hora que eu fui embora porque eles não pareciam mais sozinhos. Ou porque eu não tinha mais forças para decifrar os espaços. E eu só cabia nos silêncios e na apreensão. "Parece a lua de Estocolmo". Tem coisas que as pessoas falam e eu não aguento. Eu sei quando tenho que ir pra casa. Acredita em mim quem quiser, a conversa foi exatamente assim. Acredita neles quem quiser também, como eu acreditei. Queria que mais gente pudesse descobrir tanta verdade quanto eles. Queria ser capaz de descobrir sozinha ou ser mais vítima dos encontros intra-casuais. Mais luas de Estocolmo, mais, por favor.

Mariane Cardoso

4 comentários:

  1. Dei um suspiro longo após ler esses dois. Quando entro assim no texto sinto a garganta arder e o sorriso abrir. Me emocionou por demais, me emocionou ao ponto de eu não me aguentar e vir aqui. Lindo.

    ResponderExcluir
  2. Esse quase sorriso triste, esse quase segredo contado, esse quase romance encontrado, essa quase paz. Que horas seriam? Não importa, importa? Não se a lua da vista deles for a mesma de Estocolmo. E, então, a observação que encontra uma pausa para retirada. Hora de deixar as horas se perderem só para quem não precisa de relógio. O tempo escorrega entre os dedos de quem para pra observar o silêncio arrastado de amantes desconhecidos.
    Que saudade, pequena.

    ResponderExcluir
  3. A Lua de Estocolmo andava tão sumida por aqui, mas esses amantes me deram o privilégio de vê-la por um tempo que não importa agora... Bonito... Bonito demais.

    ResponderExcluir

Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

Quem sou eu

Minha foto
18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.