Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Lodo

     "Março", ele me fala dentro do ouvido, mas sendo um pouco menos gentil ou pacífico do que o começo. Impaciente, dizendo por trás do som - e eu percebo isso nos olhos - um não tenho saco pra mais nada. E eu também, que passo o dia inteiro com a preguiça ou tédio, confesso calada que não tenho. Suspiro antes e ele desce o rosto pelo meu pescoço, meus ombros, braços e fica quieto na minha barriga. A casa é abafada e solto um "por que março, amor?", mas sai mais desleixado do que eu gostaria, sem coragem ou realmente sentimento contido em cada pausa. Só então percebo que ele já dormiu com a cabeça em minhas costelas, que a gente não fez nada o dia inteiro e que continuaremos sem fazer nada, inclusive sem resposta, ou sem futuro, um final típico da tal promessa de dedo cruzado.

     Tem que ter algum sentido nisso tudo, não é possível. Aí ele suspira perto do meu umbigo perdido em sonhos, e eu sou só uma mulher desacostumada. A sua mulher desacostumada. Tem que ter algum sentido nesse sofá que não ficou disposto em Feng Shui garantindo qualquer harmonia na casa, tem que ter razão para março, abril, dia das rosas ou cidade de Roma. Para todas essas coisas que ele sussurra no meu ouvido antes de dormir e que eu nunca tenho saco para recapitular ou descobrir sozinha o porquê. Eu nunca descubro sozinha, entende? Enquanto a tarde é morna e rígida e sufocante de vazio, ele ainda consegue dormir. E eu não tenho ânimo de ser sozinha.

     Mas ele sabe que em março o último botão da roseira da varanda morreu por falta de água, porque a culpa é dele e do sol, e que ambos só estavam fazendo o próprio papel. Eu que não quero descobrir, e não descubro porque não quero. Por isso fico nessa de respirar com cuidado para não acordá-lo. Só que dói demais, pois demora crepuscular. Dá para ficar horas e horas encarando a janela e não chega a hora de dormir nunca. Mas a culpa é minha também, porque nenhuma vez li para ele aquele do Vladimir, sobre o elevador que não parava jamais de descer, não parava nem que fosse no inferno, e essas coisas foram feitas assim sem intenção. Jamais recitei para ele um poema sobre estática, se é que existe. Era isso que eu precisava descobrir para ensinar a ele. No final das contas, eu também perco os fios e começo a tossir de propósito, porque sinto que ficar sozinha pode ser mais perigoso do que o próprio perigo. Ele desperta e finge que me entende, mas eu sussurro muito baixo um "por que é que você não faz amor comigo do mesmo jeito?" e ele fica sem entender, solta um "quê que 'cê falou, meu bem?" e eu apenas digo que não sei, ainda preciso descobrir. Que somos mutáveis e março não muda. As perdas não saem do mesmo jeito. Só me interrompo por um beijo que ele me dá ainda com preguiça e ainda se esticando sobre meu corpo. Mas feitiço de amor não funciona para desinteressados.

     Peço para ele não dormir de novo, daqui a pouco já é noite e eu tenho medo de ter medo. De conseguir minhas desilusões sozinha. Não, eu preciso da sua vigília, meu amor. "A gente precisa ter fé em alguma coisa". Daí ele troca de lugar comigo e fica com as costas de suor coladas ao tecido do sofá velho, me deita por cima e balança devagar enquanto ainda tenta lembrar como é que se canta uma cantiga de ninar. E tenta de tudo como se eu fosse um bebê, como se fosse dar certo. Mas dorme antes de mim. E eu só consigo repetir internamente que a gente precisa ter fé em alguma coisa. Que no próximo março existirá fênix em forma de flor. Ou que vai ser mais fácil cair o sol. Ou que, na realidade, vamos cair em nós mesmos e arrumar os móveis do jeito certo. E que vamos ser finalmente certos, talvez nem precisemos de poema de estática, nem eu precise descobrir sozinha. E é assim que, aleluia, eu começo a acreditar que o lodo vai indo embora. Desse jeito. O lodo vai escorrendo, embora denso. O lodo vai migrando na mesma inconstância, a passo de serpente. Mas a gente, definitivamente, precisa ter fé.

Mariane Cardoso

4 comentários:

  1. Que o lodo vá logo embora de tudo, menos desse texto maravilhoso.

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  2. Meu Deus! D-E-U-S, assim mesmo. Que texto guria, estou encantado a cada vez que leio você, saudades.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.