Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

domingo, 2 de setembro de 2012

Vagando pelos toques que eu encontrei os manuscritos.

     Eu ainda morava a poucos quilômetros de distância, o que garantia menos de meia hora para entrar em comunhão com a natureza nos fins de semana. Depois de pegarmos a estrada de barro, íngreme e pedregosa, passávamos pelo povoado de casas baixas e descoloridas onde as crianças desmontavam o golzinho de estacas e saíam da rua pro carro passar. Do que me recordo é o rastro de poeira que sempre ficava para trás à medida que os pneus avançavam, como um fantasma ou um complô cósmico que certificava nunca estarmos realmente desacorrentados. 

      Depois do povoado, chegávamos à casa do meu avó, num pedaço de terra batida entre os milharais e as palmas sob o sol, com bancos de madeira maciça na varanda, piso de octógonos e flores amarelas ao pé da árvore. Meus pais cobravam para que eu pedisse a bênção, e naquele tempo eu ainda me obrigava a fazer tudo o que eu tinha vergonha, tudo que não fazia sentido pra mim. Algumas vezes, meu primo vinha visitar o avô com a gente. Tínhamos quase a mesma idade, e eu esperava que ele pedisse a bênção primeiro, porque só depois eu cumpria, numa espécie de brincadeira em que eu imaginava que estava imitando-o.

     A diversão começava de verdade quando nós dois saíamos entre as plantas descobrindo novos horizontes. Ele queria ser um cientista, eu ainda não sabia o que seria de mim. Ele voltava com arranhões nos joelhos e nos braços, coceira entre os dedos e folhas verdes desalinhadas entre os cabelos. Eu permanecia quieta durante toda a jornada, espiando pelos cantos, capturando as expressões do seu rosto enquanto ele descia pelos galhos da árvore, inalando o cheiro de fruta madura e de dourado que a terra inteira borrifava. Caminhávamos entre as ervas daninhas enquanto éramos crianças demais para pensar em morrer. No meio de tanto verde, lembro que encontramos uma planta pequena que encolhia as folhas quando sentia nosso toque.

      "Essa é a mimosa."
      "Eu sei."
      "A mulher do vô disse que também chamam de maria-fecha-a-porta."
      "Eu sei."
      "Engraçado, né?"
    "Por que você acha engraçado? Achei tão sensível. Imagina se fosse uma pessoa, estaria condenada a não sentir o vento de frente."
      "Eu não sei de onde você tira essas coisas, Mari."
      "Ora de onde, de mim. Essa daqui é como eu."

      Mas ele não entendia o que eu queria dizer. Tampouco eu sabia que guardava alguma pista do que a vida esperava de mim. Hoje tento pôr uma ordem nisso tudo, decodificar minha quietude e dar minhas desculpas conclusivas do porquê de digerir todos os lugares, os sons e as luzes sem nunca obter nenhum deles. Cresci por fora de tudo, encostada nos muros, tentando entender os movimentos e os motivos para, no fim, filtrá-los inteiros para dentro de mim sem que eles me tumultuassem. E decididamente sem que eu modificasse a beleza de tudo que há no mundo.

      O primo trilhando curvas entre os pés de laranja, meu avó arrumando as abas do chapéu na lateral da casa, a mimosa que devia sofrer o pão que o diabo amassou em cada chuva, e eu calada à borda de tudo, falhando em minha missão de não tumultuar internamente. Ainda não sabia que precisava escrever.

      Perto disso, o povoado que era minúsculo, descolorido, umas quatro ruas que se cruzavam e só. Desde sempre eu pensava em como esse lugar era feio e que a única coisa que ainda o salvava era o riso dos meninos jogando bola que ecoava metros à frente. Mas o carro sempre estragava o brilho quando íamos visitar a roça do meu avô.

      Um dia, a estrada de barro estava repleta de borboletas amarelas que transitavam entre as flores da encosta e o milharal lá embaixo. Eu já tinha 13 anos. Lembro que eu repetia mentalmente "eu sou gente!" "eu sou gente!", e me fazia decorar que pensei isso aos 13 anos. Mas já era tarde, o pára-brisa ia matando as borboletas enquanto meu pai mantinha o pé no acelerador.

      Eu não podia negar que minha natureza era desesperada e sedenta demais. Eu imaginava dormir na varanda, sob as estrelas, com cigarras espalhadas que contavam segredos em uma língua perdida. Imaginava minhas pernas correndo entre minha cidade e o paraíso colorido da casa do avô. Imaginava conversas vagas cujo sentido alguém descobriria vinte e cinco anos depois. As árvores que manuscreveram o choro da canção: O manuscrito que cantou o choro da árvore: A canção que arvorou o manuscrito do choro. Eu ainda não conhecia dylanismos, mas a gaita combinava com tudo no meu sertão.

      No entanto, o que me marcou de maneira mais profunda foi a estranha coincidência de passar pelo povoado sem que os meninos de riso ecoado estivessem jogando. Nesse dia, o lugar inteiro estava de portas fechadas, como num filme de terror, cada cidadão escondido no fundo de seu próprio muro, um silêncio que fazia escutar os corações. Minha mãe comentou, do banco da frente do carro, que um menino, filho de fulano, morrera pela madrugada e que por isso, certamente, todos tinham fechado os comércios e as casas, por luto.

      A partir daí, a interrogação que sugava minha vida foi ficando mais translúcida, os sentidos finalmente se abriam para mim. Num povoado tão feio, esse menino teve tudo, entrou nas casas e nos comércios, todas as portas tiveram que descansar junto a ele. O dia em que a pequena Terra parou. A verdade é que eu começava a entender (depois de mimosas, poeiras e cheiros) que para mim, definitivamente, o mundo tinha guardado mais surpresas do que se pode temer. Eu ainda morava no silêncio, na branquidão, eu ainda andava lentamente por aí. Mas já havia encontrado povoados belos e esquecidos no mundo.


Mariane Cardoso

Um comentário:

  1. Gente como você é muito difícil de encontrar... Sucesso para o seu livro.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.