Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

domingo, 5 de agosto de 2012

Era o hino dos incertos sem censura

      — Meu jeito de absorver tudo isso ainda não foi acoplado a sequências de passos. Não há uma lista ou equação que te diga o que vai sair de mim ou o que esperar, se é que deve esperar, amour. Mas o caso é que sempre assusta muito.

      — Assusta pelo que pode aparecer do que já existe aí dentro?

     — É mais por esse seguimento de me entender, não entender, re-entender e depois, enfim, ser neutra outra vez.

      — Como andar em círculos, Mariane.

      — Como andar em círculos forrados de armadilhas. Ferro e folhas mortas.

*

      Mas então, depois de anos, nunca consegui compreender como você ainda mantinha o mesmo rosto sem barba, jovem e iluminado, tirando o cavanhaque falho onde minha boca insistia firme em se arranhar.  Não tínhamos mudado muito. Ainda os bons exemplos de seres humanos, mantendo a sala arejada, os tapetes inutilmente sem manchas de sola de sapato, o chuveiro funcionando no morno e a calçada livre de pragas. A noite era minha hora de subir no palco imaginário e despejar todos os meus dilemas ao seu ouvido, os segredos vergonhosos misturados, tudo ao mesmo tempo, minhas indecisões sem fim. 

      — Perceba que você nunca cai depois de enxergar o chão, é sempre antes.

     — É isso. É claro que não é possível escolher. Não que eu seja dramática e pessimista, meu bem, mas há uma verdade a ser registrada e, infelizmente, algumas armadilhas podem ser fatais.

      — Sim, mas por quê folhas mortas?

      — É tudo o que sobra quando escapamos dos ferros. O resto é ilusão. O caminho é feito dessa única maneira. Isso quando não passamos a acreditar em tudo trocado e compramos folhas por ferros. Aí já é uma espécie de loucura.

      — A loucura do dia-a-dia?

      — Transformando empregos em objetivos, objetos em alegrias. Amores em obrigações.

      Daí eu alongava meus braços, calculava até onde deveriam chegar as pontas das unhas, disfarçava meu sorriso de canto de boca, mesmo que a tristeza estivesse borbulhando no peito. Mesmo com todas as palavras ferindo. A alegria de reconhecer um entendimento seria sempre maior. É como se houvesse um pássaro morto na sua gaiola e você fisgasse a morte para ser o assunto do dia: eis a triste atenção que você precisa atrair para ganhar a capa do jornal.

*

      — Minha flor?

      — Hum?

      — Se você pudesse materializar um segredo íntimo em um objeto, o que ele seria?

     — Ah, não sei. É muito complicado tentar esclarecer qualquer segredo íntimo, eu cairia indubitavelmente num poço sem fundo.

     — Quer saber minha aposta? Eu acho que você criaria um desestabilizador que desestabilizasse a si próprio.

     — Nada mais seria fácil, ninguém nunca mais se acomodaria no agora.

     — É engraçado e desolador. Como você, será?

     — Assim como eu, amour. Assim como eu.

     Sobretudo, há a culpa em entender e a agonia em não entender, de modo que a passagem entre um e outro é invariavelmente ferina.

      — E se esse desestabilizador tirasse de você a condição de minha?

      — Então, em algum momento, eu veria mais sentido em ir embora do que em te ouvir falar de amor. Nunca imagino esse tipo de inconsequência, o mundo tomou atitudes retraídas, há muito mais segredos que eu ignoro ou desconheço. 

      Sem contar o que não compreendo sobre as estradas rachadas de sol, sobre as interpretações das estrelas, sobre as bússolas sendo utilizadas por caras sem destino. O que não entendo sobre as floristas de rua enrolando páginas de revistas até serem rosas. Fatigadas em suas cestas de palha. Sabe, por exemplo, quem faz as cestas? Quando elas conseguem inspiração pra rosa sair do papel? Enquanto escrevo e questiono a rosa, existe sempre alguém fazendo a própria. Acho tudo isso um enigma que cresce e engole esperanças, e é imprescindível se afogar no sono dos que não têm memória para não cair no desgosto da vida. Quando se esquece, os círculos repetitivos por natureza não nos incomodam mais.

      Sendo assim, antes de te entender ou de não te entender, de esperar que você caia em prol dos fenômenos ou pule sobre todos os muros, enquanto o céu te assiste, melhor deitar e fechar os olhos como num pré-requisito diário. Para que os sonhos não saiam pelas pupilas, talvez.

     — Mas e você? O que você faria se eu não fosse sua?

     — Assim definitivamente?

     — Sim, no lado do nunca mais, no plano de hipóteses.

     — Eu compraria um palco de verdade, meu bem, inventaria um teatro vinte e quatro horas.

     — Para se distrair de mim?

    — Não. Pois assim eu seria vinte e quatro horas personagem. E nunca mais precisaria ser eu mesmo.

*

      Como fazer tudo isso e ainda enterrar pontos de vista, pessoas dentro da gente, histórias e pequenos traumas guardados? E, maior que qualquer outra dúvida, como é que fazíamos para sustentar o que coube em nós, se é que coube? Talvez apenas em nós, e não a nós.

      — Não gosto quando você fala talvez.

     — Quando falo, estou te dando o meu endereço.

*

      Eu imaginava, ao longe, o mar que recuava e avançava pela areia, arrastando espumas e sais, invasor e passivo. Ao longe, as escadarias servindo de via de mão dupla, erguendo e abaixando passos, as pegadas em duas direções. Ao longe, todos os caminhos de ida e vinda das pessoas que nunca souberam de verdade  qual era o seu caminho. O que ninguém entendia é que eu também era a onda que quebrava brusca na praia e depois voltava serena.

     É que eu também podia ser a última folha seca confundida do ciclo, cravada em algum órgão vital.

Mariane Cardoso

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

Quem sou eu

Minha foto
18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.