Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Pré-crime.

      Preciso te mostrar um parágrafo, pois não consigo esquecê-lo, mas também não tenho texto para ele. Tem a ver com aquele filme de ontem, que me deixou nauseada. Quer dizer, eu acho que sim, porque à noite isso não me saiu da cabeça. Mas não é sobre o filme, eu não sei sobre o que é. Nunca sei. Qualquer protótipo de arte é um mistério para o próprio autor.

      Lembro-me de Clarice dizendo que o trabalho preferido dela era O Ovo e A Galinha, e quando o entrevistador perguntou por que, ela disse que era porque não o entendia, porque nunca o entendeu completamente. Ou então me lembro da história de Bob Dylan, escrevendo combinações de palavras sem sentido, sem coesão, sem objetivo. E ele rabiscava páginas de poemas loucos, falava de cachorros, pagamentos bancários e cemitérios numa mesma frase. Tudo por simples piada interna. Ele queria ver a cara das novas gerações tentando interpretar suas palavras, queria ver até onde ia a audácia humana, impondo significado nas coisas que não existem. Como hoje promovem as teorias de conspiração. Aliás, não. Como hoje promovem o pecado, que é mais antigo que o broto do universo.

      Eu queria ter um pouco mais de ousadia, mas a piedade me atrapalha.

      Preciso te contar sobre o que absorvo e também sobre o que absolvo de tudo que sinto. Não sei o que fazer do meu tempo, o meu tempo é agora e vai deixando de ser enquanto não sei o que fazer dele. Dê-me apenas uma opção para viver, pois é nessa que gastarei meu saldo. Desde que descobri o outro lado, nunca mais fui feliz. Vivo no limite, já que há sempre a parte que eu não quero e essa parte me toca  pelo lado da repugnância ―, mas me toca. Jamais estive desconectada.

      Outro dia, quando você me levou ao desfile, com todas as moças magras de cabelos lambidos flutuando pelo tapete vermelho-cor-de-assassinato, eu sorri muito. As clavículas sobressaltadas dançavam, mas as moças continuavam sem me olhar nos olhos e sem olhar para onde iam ou por onde pisavam. Como se não importasse a miséria humana ou a decadência interna. E assim eu também sorria. Sem me importar com os perdões. Às vezes deixo passar, ainda não é it's all over now, baby blue.

      Mas, internamente, tenho certeza que as mulheres mais bonitas são as que choram, sabia? As que não conseguem se livrar do apego, seja ele o amor, a culpa ou a pena. Por que você me leva em lugares tão podres e cheios de dourado? Por que você me tira de casa às dezenove horas sem pretexto ou necessidade alguma, baby?

      De repente você descobre que as distrações da vida também são propositais e que luto contra a minha natureza para não adiar as verdades ou as dores. Há beleza nos prematuros. Estar um pouco à frente do que se espera é como ser o primeiro botão de rosa do deserto, milagrosamente vivo por dois dias.

      Poderíamos fotografar as quedas, as explosões, os orgasmos e as extinções. Tudo, se chegássemos antes. Se doêssemos antes. Enquadraríamos os retratos sem ainda estarem desbotados ou roídos por traças. Mas escapar tornou-se o nosso alimento, nossa alma que em pouco tempo se esvai. Já fechamos os olhos sabendo que as sombras nos rondam, inevitavelmente. Os que nascem de sete meses por terem medo de não chegar à vida são os mais fortes entre os medrosos.

      Mas, então, como eu ia dizendo, preciso te mostrar um parágrafo. Não o finalizei, pois ele ainda tem sentido. E, se tem sentido, significa que chegou antes de mim, eu não o capturei em sua grande metamorfose, em seu perfeito caos e paradoxo.

      Essas coisas precisam ser flagradas ainda em sonho, mesmo que viremos loucos assim que acordarmos. Robert Mapplethorpe, quando quis fotografar o lado sexual das flores, já estava muito alterado. Um dia, finalmente gritaria eu te amo! eu te odeio! contra o espelho. Bertolucci, quando fez da bunda de Maria Schneider um antro sagrado que conspirava contra a insensatez do mundo, estava destinado a não ser perdoado. Arruinou a vida da garota e tornou-se para sempre o gênio manipulador. Crápula da arte. Como se não fosse obrigatório rasgar a terra para que aquele botão de rosa milagroso nascesse.

      Os heróis que espiam o pré-crime, a vida se encarrega de levar embora.

      Lembra do seu amigo, o europeu? Aquele que levamos até o aeroporto. Ainda não chovia no céu naquela hora. Ainda não havia fogo alastrado-se pelos tecidos naquela hora.

      ― Você fuma? ― Ele me perguntou.
      ― Não.
     ― Ainda bem, baby. Não permitem trazer isqueiros nem fósforos na mala depois que passamos daquela porta.
      ― É sempre mais fácil para os desapegados, não é?
      ― Você é uma?
      ― Claro que não, man. Eu tenho até olheiras. ― E nessa hora rimos, uma alegria costumeira que era seguida do nosso reconhecimento de ilusão. Ríamos, mas ríamos enquanto o riso não era percebido. Você voltava da lojinha com o chaveiro que tinha ido comprar, "uma lembrança, cara, para o meu carinho e o dela não saírem das suas mãos". Ríamos, mas arranhávamos por dentro.

      Depois paramos na frente da sala de embarque, acenávamos, desejávamos boa viagem/manda notícia/liga. Mas, na verdade, nunca nos importamos com a ligação. Só queríamos que em algum canto do mundo ele estivesse bem. Mesmo sabendo que, assim como nós, como os abusados pelas poesias, como os assassinados pelo mistério... Assim como nós, ele não seria perdoado, a fraqueza também seria uma confissão.   

      ― O mundo me espera. ― Isso enquanto seus passos se distanciavam de nós dois.

      Vinte horas depois, ficamos sabemos que o avião dele havia caído.

      E sabíamos desde sempre que ele não poderia ter dito aquelas palavras, que o mundo não podia esperar. Sem expectativas alheias viveu o melhor dos prematuros. Ele devia chegar antes que o mundo sequer sonhasse. Devia ir antes de partir. Ou estragar, antes que o caos fosse organizado. Mas precisou sobrevoar a terra para que finalmente decidisse ficar pelo céu.

      Por hoje, no entanto, talvez seja melhor não haver parágrafo. Sim, todo filme, todo avião, todo fato antigo já fora perdido. Existe apenas a aura, o magnetismo dos cortes que constrangem nossos olhos, mas que chicoteiam nossos corações. É melhor, por respeito ao luto de todas as vezes que deixamos passar, em que fomos expectadores e meros sensitivos. You must leave now, assim que acabarmos antes do fim.

      Os precoces que ainda não somos, nas contemplações esquecidas, estão vivendo nos porões dos nossos sorrisos.

Mariane Cardoso     

2 comentários:

  1. Não tenho palavras. Só sei que você tem um dom. Nunca o deixe de lado :)

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  2. Acho que deve ser bem a trigésima vez que leio esse texto e nunca me cansarei ler. Também não tenho palavras. Você é esplêndida, menina!

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.