Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Ferrugem e cortes cegos

     Ângela, disse ele, enquanto todos amaldiçoavam a chuva que atingia as roupas dos varais e nós apenas nos deixávamos atingir: Ângela, de repente tudo é translúcido, fraco. De repente a gente chegaria antes, mas para isso tem que se chocar com o futuro e não é todo mundo que tem essa força. Nem pense que qualquer um poderia ter. Muitas vezes a partida acaba em um blefe. Tu não tem nenhuma garantia de acerto, apenas a tua voz, tua expressão corporal. O que quero dizer, Ângela, é que de vez em quando tu também precisa acreditar em uma mentira.

      Mas tuas armas nunca foram acordadas. Tua boca fechada é a eterna saudade do meu futuro. A gente nasce com vários artifícios para enveredar por onde quiser: a tua cara de menina, tua mão inocente que treme com a realidade, teu olhar longe ou talvez dentro demais. Por que tu olha tão fixo assim? Por que tu tá sempre de braços cruzados? Por que fica de pé recebendo a chuva nos ombros e não faz nada se tu podia ser como ela? Corrosiva, Ângela, pelo menos um pouco, pelo menos um pouco é o que te peço, por Deus. Esteja liberta.

     E talvez, ainda assim, ainda um pouco antes de blefes ou tentativas de vôos, tu analisa o mundo comigo. Vê o quanto a família se acomodou, a cidade foi esquecida pelo globo, as músicas evoluíram para o artificial acompanhando as mudanças dentro deles. Nunca mais teu banjo ou tua cena de filme subjetivo. Hoje em dia ninguém mais precisa se descobrir. Hoje em dia talvez ninguém mais exista. Teus olhos fechados e estáticos enquanto tenta se esconder de uma verdade que não quer.

     Se por uma vez, Ângela, bastaria uma vez, tu saísse comigo por aquela porta acreditando com garra que fora daqui o mundo é outro, se por uma vez tu aceitasse enganar a si mesma dizendo que o futuro vai dar certo se mudarmos... Então ele poderia dar. Teus cabelos soltos, a única parte esquecida e esvoaçante do teu corpo, que dançam com e contra a vontade do vento, teus cabelos soltos podem ser tua alma. 

     Por hoje, enquanto todas as colisões ainda não foram testadas, toca na minha mão, Ângela. Olha por entre os vales de neblina e frio, a descida escura, prata, olha com o único olhar que tu sabe ter, insistente, desbravador, e então aceita que a tua vida ainda não foi desafogada. Deixa de escutar por um momento e também grita, expulsa, chora por todas as vezes que tu pertenceu a algo que não queria pertencer.

     Teu corpo, quando encontrar com as vontades adormecidas do teu coração, é todo o instrumental de fundo que tua voz esqueceu ao trapacear.

Mariane Cardoso

2 comentários:

  1. É lindo o jeito que tu compactas tanto sentimento em tão poucas palavras. O texto tá daqueles tão bons que nos deixa sem reação (como a maioria dos que tu escreves). Sempre me faz bem ler aqui.

    ResponderExcluir
  2. se eu disser que tu escreves bem, eu estarei mentindo... pois esscreve sentimentos em palavras, escreve nos que estamos do outro lado da tela! escreve perfeitamente!! Seguindo!

    ResponderExcluir

Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

Quem sou eu

Minha foto
18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.