Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sábado, 14 de julho de 2012

(...)

     É que quando os sinos tocam meus tímpanos vibram, e os pássaros voam, e as pessoas olham, e as crianças correm, e as nuvens passam, e muitas dores chovem, e eu não acompanho. Eu sou a parte do mundo que transbordou por não caber. Os eventos simultâneos me tiram do sonho, me tiram do avesso, me tiram da superfície e do amor que tanto me segura. Já não consigo cair, já não consigo seguir.

     Já não consigo cantar, já não consigo atirar, já não consigo parar. Pois sendo apenas uma, já não consigo caber. E a parte que não cabe sente tudo. Sente como se fosse um testamento de última hora, um pedido de perdão, um único suspiro, o fôlego que faltou na hora em que se afogou, a pele que ardeu na hora em que queimou, a vida que morreu na hora em que nasceu.

     Se você riscasse outras paredes e visse sua cobertura desmoronar, se você não tivesse visto muito, mas pensado em tudo o que não tinha para pensar, se você tivesse arranhado o disco e se obrigado a fazer novas canções, aí sim você ergueria uma tocha de fogo, uma fonte de fumaça que sufoca e que só pode ser levada para longe com palavras ao vento. Se você tivesse visto a felicidade, nunca me encontraria de verdade.

     Eu sou a parte destroçada, o fóssil, o que ficou no subterrâneo, as peças que ninguém sabe para que servem, o traço escondido de enigma que veio do passado, as histórias jogadas aos pés de quem voa e os olhos de quem vai embora.

Mariane Cardoso em "Quem sou eu ou inalando solidões"

4 comentários:

  1. Mariane, parabéns pelo dom!
    Há cerca de um ano aqui, ou antes em Zazulejos, sempre dou uma olhadinha nos seus escritos, e sempre fico admirada.
    Sucesso para você!

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  2. É realmente um dom, você escrevendo é incrível, pequena. Nunca pare, mesmo que te falte tempo, pensamentos, ou momentos que lhe chamem atenção; sentimento eu sei que sempre existirá. Continue. Um beijo. - 23

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  3. Não pude deixar de chorar. Você não é nada disso. Você é um anjo...

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  4. O dom da palavra, da comoção. Poesia na alma e no coração, no ar que inspira, que falta. Você tem vida garota!

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

Quem sou eu

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.