Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

terça-feira, 12 de junho de 2012

Olhai sonhos mortos nos porta-retratos antigos

      Noite. Assolado por partidas, o céu esconde as estrelas e Vênus além da janela quebrada do meu quarto. Há duas medalhas de honra ao mérito penduradas na parede como quando se empalha um animal extinto. Toda a minha vergonha finalmente pôde ser acobertada, eu penso. E penso também na felicidade dos meus pais, no marketing gratuito do colégio e na mão deslizando por minha cabeça, dizendo "é isso aí, garota, você está indo no caminho certo", mesmo que agora eu saiba que ninguém pode me dizer qual é o caminho certo.

      Há, no canto da escrivaninha, um guardanapo rabiscado com vinte nomes de artistas que eu nunca tinha ouvido falar antes de hoje. Retirei de um livro que parece tão bonito quanto as possibilidades de determinar os limites do próprio relógio. Apenas sobre dois dos artistas tive tempo de pesquisar, mas ainda me dói o fato de que anos mais tarde eu ainda serei tão avulsa e tão humana que pouco saberei deles, ainda que leia todas as biografias ao meu alcance. A impossibilidade de coexistir dentro deles, a prisão desse lado de fora, nunca me deixará pensar da maneira como eles pensaram. Sentir como eles sentiram. E saberei todas as histórias de infância, mas o detalhe de uma maçaneta torta ou um candelabro árabe não contado me fará perder toda a essência da coisa. E nunca fluir como eles fluíram.

       Um desastre do qual nós não escaparemos. Como quando se adormece no final dos ciclos. Como quando se entra em um elevador.

      A primeira vez que entrei em um foi uma das grandes decepções da minha vida. Não existe paisagem, não existe vento, não existe aquela coisa que a gente espera sentir no centro da garganta. Não se entra em contato com nenhum nível superior e o céu acima de nossas cabeças apenas fica mais acima, independentemente de quantos andares ultrapassemos. Com a austeridade exemplar para que os seres humanos não se sintam maiores do que eles mesmos suportariam ser.

    Relembro uma denúncia que escreverei daqui a quinze anos:

     "(...) tanto que aprendemos nas galerias de arte, tanto que exploramos nas telas a óleo e ócio, nos altares versejados, nos supermundos esvoaçantes... Mas nenhum de nós observou a verdade que deveria ser sentida. Duzentas medalhas não seriam o bastante para afirmar que chegamos lá e nenhum de nós representará o suficiente para ser mais. Tu estarás contido e, sobretudo, escreverás aquilo que te afliges, pois o que não for escrito permanecerá eternamente congelado no intrínseco de ti. É o único remédio, escrever."

      Mas eu ainda quero e rezo todas as noites por um milagre que não me permita ser tão circunscrita aos meus próprios sentidos de humana simples e erradamente sonhadora.

Mariane Cardoso

3 comentários:

  1. Vejo os porta-retratos e tento ver os sonhos antes de morrerem mas me torno perdida sem "o detalhe de uma maçaneta torta ou um candelabro árabe" que não foram possíveis observar. O texto trouxe até mim algumas passagens visuais. Belo e inquieto!

    ResponderExcluir
  2. "Duzentas medalhas não seriam o bastante para afirmar que chegamos lá e nenhum de nós representará o suficiente para ser mais."

    ResponderExcluir

Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

Quem sou eu

Minha foto
18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.