Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

domingo, 3 de junho de 2012

De dentro do escuro

     — Que quer dizer concomitância, amor?

     Era tarde da noite e já estávamos deitados há muito tempo. O calor das cidades na Bahia, o céu que fabricava rachaduras e as lembranças de um ano sem chuva nos persuadiam a olhos fechados. Queria dormir, mas de minuto em minuto a Laura puxava algum assunto. 

     — Não sei, Laura.

     — Ah, sabe sim, você só não quer me dizer. O escuro me deixa agitada, amor, não durma agora não.

     — De onde tirou isso?

    — Oxe, filmes, livros, músicas, Zecas Baleiros da vida. Vampiros, bruxos, histórias em quadrinho. Escuro nunca é bom.

    — Não, amor, de onde tirou essa concomitância.

   — Ah, eu tava ouvindo hoje dois senhores conversando na frente da banca de revistas, aquela perto do mercadinho que tem o toldo amarelo. Não lembro do que eles falavam, alguma coisa de política, sei lá, não prestei atenção, você sabe que eu não gosto desse debates que não chegam a lugar nenhum, né? Me dá uma preguiça. A menos que seja sobre a leitura de algo que me incentive a entrar numa combi e viajar pelo litoral, só parando pra comprar uma tornozeleira verde-amarela-vermelha, ou então pra oeste, sempre a oeste, traçando escapismos. Claro que eu nunca teria coragem, mas eu leria com muito gosto. Você teria coragem, amor, de viajar assim exageradamente sem motivo nenhum, só pelo prazer de ser um corajoso?... Amor? Hein? Amor, acorda.

     — Não tô dormindo ainda, Laura.

     — Quer que eu te deixe em paz, né?

    — Não é isso. Muita coisa no mundo. É necessário sugar um pouco pra gente antes que as terras morram sozinhas. Chore um pouco também. Durma um pouco. É que às vezes sua alegria me cansa, amor.

     — Não tô alegre. Mas dormir também não vai ajudar em nada. E o que há com você? Odeio essas barreiras de separatividade. Sabe que a dor do mundo é toda minha também, e eu sei que não chove e que você queria chuva pra toda aquela conversa de lavar a alma.

      — Acho que é isso mesmo, meu bem, lavar a alma. Devíamos comprar uns incensos... 

     —  Posso comprar amanhã. Acordo quando o sol bater na minha cara todo o estrago de mais um dia.

     — Certo. Eu teria coragem sim, sabia, Laura?

     — Ãn? Coragem de que?

     — De entrar numa combi, se você fosse comigo. Nada de viajante solitário.

      — Mas on the road, sim? — Ela ria e se aconchegava na curva das minhas costas, os seios separados da minha pele pelo tecido fino da camisola, a boca no meu ouvido sugerindo excessos — Uma vida de Jack Kerouac, já pensou?

     — E você com essa tornozeleirazinha que quer comprar, hein? Ia ficar linda demais.

     — Ia, claro que ia, tornozeleiras modificam absurdamente a beleza das pessoas.

     — Mesmo assim, Laura. Vampiros também não existem e você ainda acredita neles.

     — Como sabe que não? — E ela se afastava de novo, só tocando seus pés quentes em meus pés quentes, as estrelas na janela secando os trovões que combinariam com o nosso quarto, se existissem — Tem que aceitar que de certas coisas a gente não tem e nem terá compreensão.  

    — Li em algum lugar que foi uma invenção dos contadores de história, dos cineastas, dos poetas malditos. Vampiro é todo mundo que sufoca a vida. Nada de veia jugular, alhos e escuros. É pior do que você pensava, amor.

     — Li no horóscopo que uma coisa muito grandiosa e sagrada modificaria todo o patamar ideológico da minha vida, Junho ia dar uma reviravolta e exageros de idealizações tomariam conta dos meus domingos. 

     — E daí?
     
     — E daí que é tudo mentira.

     — Será que é?

     — Claro que é, meu bem.

     — Cuidado com o efeito borboleta, Laura.

     — Que nada. Vampiros continuam existindo, de um jeito ou de outro. E escuros não precisam de motivo.

     — Pode ser. E temos medo demais para partir sem fim, não é? Me desculpe os abusos e às vezes o coração colapsado, a incredibilidade de tudo. Tenho visto muito jornal e você tem andado muito por fora das calçadas que eu sei. Vamos ser perdoados, não se preocupe. 

     — É, amor. Mas o universo ainda lateja.

     — Sim, o universo ainda lateja, Laura. O universo ainda lateja.

Mariane Cardoso

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vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.