Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Do tempo em que eu era morta.

     Escuridão, silêncio e de repente trombetas. Às vezes, a gente nascia. Cada um vinha de uma página em branco, um oco que se refaz e que nos cospe, período por período, em algo incrivelmente assombroso chamado vida. Daí tudo o mais é simplesmente não ter. Não ter certeza, magia e, muito menos, sentido.

     Enquanto ainda éramos vagos e o tempo estava nas nossas mãos, tudo era mais simples. O corredor de estrelas que tocávamos apenas esticando o corpo. Um coração que não precisava de contagens regressivas. Tudo era mais nosso. Acho que nascer é a grande desilusão que o universo nos trapaceou. A aparência é de ganhar o planeta. E ganhar sentimentos e canetas foi nossa distração por muitos anos, como tentar ouvir o rádio na hora certa e assistir ao mesmo filme quatro vezes. Mas nenhuma ramificação até hoje valeu a pena. Eu e você perdemos tudo ao nascer. Os dedos que roubavam a luz trocados por dedos que estalam. Feios e comprometidos. De vidro. Cabelos, pernas e olhos quebradiços. A gente aprendeu a chorar e começou a dizer que sente falta do que ainda não sentiu. Tudo do tempo em que estávamos mortos.

     Não fazer sentido é essa conexão com o passado que fomos impedidos de criar. Um corte brusco na melhor parte da nossa história. Antes de viver, uma paz enorme existia na lanterna apagada em que a gente morava. Talvez não nascer seja igual a morrer. Um passado que ninguém sabe e um futuro que por si só anda parado no 1/2. Separados por um déjà vu inconsciente. Não lembramos da época em que todos os tempos do mundo estavam compactados em um único ponto das nossas mãos. Podíamos ser cada um dos maiores segredos do século, o jazz mais bonito e os hieróglifos que jamais serão encontrados. Podíamos. Nascer é virar o mínimo do mínimo. A angústia é provada entre os dois vazios, porque ninguém sabe da própria grandeza que um dia já teve. Ninguém sabe se terá de volta. E nunca aprendemos a alçar voo, pois antes não era necessário. Mas agora é. "Quem sabe a vida é não sonhar?"

     Nossos limites aparecem nos espelhos e persistem na retina toda vez que fechamos os olhos. Acho que aquelas constelações sentem saudade e chegam a murchar por alguns de nós. Há, aleatoriamente, aquele momento do dia em que viver é um ponto de interrogação, em que tudo é desconexo e a gente não se encaixa, e nem os outros se encaixam, e nem as coisas se encaixam nos outros ou mesmo entre si. Uma cruel incompreensão, e então ninguém mais tem motivos para continuar aqui. A extremidade do tudo nos espera e nós estamos esperando a inútil contagem regressiva acabar. Ninguém ri, porque todos são moralmente atingidos e imensamente mínimos.

     No entanto, a piada vive. Não basta a nossa ilusão. Viver é inventar as promessas de um tempo melhor do qual nenhum de nós tem certeza. O instinto sabe. Mas os vestígios divagam e somem na beira de nós como todas as constelações às quais esquecemos de dizer adeus.

          Mariane Cardoso
     

3 comentários:

  1. Seus textos são muito complexos, cansa lê-los.

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    1. Engraçado porque o que mais me instiga na Mariane é essa simplicidade com camuflagens complexas.

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  2. Seus textos são lindos, obrigada por compartilhá-los. ♥

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.