Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

terça-feira, 10 de abril de 2012

Cotidiano

     Tomo muito cuidado. De manhã cedo, um pouco exausta dos sonhos que foram desligados de mim, sou a mesma. No entanto, a luz fina que invade pelas frestas da minha janela é capaz de decodificar o milênio. Descobrir o mundo velho que me abriga e mais as curas das doenças, e o mundo novo que eu não sou valente para acordar dentro. Sempre tomei muito cuidado. Exceto pelos labirintos encrustados nas pontas dos dedos enquanto escrevo - eles insistem em viver. Eles desviam meus cansaços em palavras como cicatrizes externas de fogo na pele. Mas não. Se fossem de fogo talvez doessem menos.

     São poucos os destinos em que realizar dá tempo. Eu quis esculpir no calendário a primeira tarefa que coube a mim. E o que cabe a nós é como um tiro nascido dos olhos vendados, pois acertar é só questão de aceitar.

     Esqueço a porta aberta de propósito ao sair de casa. Assim, as escadas sujas da lama do domingo darão lugar a um céu que se abre como se quisesse nos consumir. Ou ser consumido. Mergulhado de uma vez em nossa boca onde as verdades são trancafiadas. Às vezes, anuladas por distração nossa. Outras vezes, elas crescem de um jeito tão assustador que se tornam nós mesmos. Mas só é certo que estão eternamente trancafiadas.

   Mastigo as palavras enquanto medo é o medo. Nunca apenas nosso medo, outro medo, um medo. O medo. Mesmo acordando igual, no mundo velho, sob um céu pacientemente suicida. Mesmo com tudo nos conformes. A luz estará de volta amanhã, os meninos farão malabares com pernas de pau para sempre firmes em frente à faixa de pedestres, as árvores de pé, os carros em movimento com o cheiro das paisagens que não são vistas há sei-lá-quantos anos, o sinal vermelho seriamente cronometrado. Só assim posso seguir. Destinos são muito matemáticos. O horizonte se confunde com o outro lado da rua. Tomo muito cuidado para que eu não escape do resto das coisas. Destinos são instantâneos.

     Sei que um posto de gasolina nunca tem o cheiro de outro posto de gasolina. O vento rouba o pouco de perfume que ainda segura no meu cabelo: é preciso cautela em dobro. Pensando bem, quis que poucas pessoas me conhecessem. Com o tempo, torna-se fato que existe uma linha, uma fronteira muito tênue entre você ser esquecido ou não. Talvez eu tenha feito os cálculos para não construir uma vida completamente encaixada. São os espaços em branco que fortalecem a minha angústia cotidiana, é isso o que me mantém ocupada. Cortei tudo o que me deixava inflexível. As pessoas, os cinemas, os títulos, tudo isso é só matéria-bruta, e já faz muito tempo. Escrever é provar que aqueles lírios estarão envenenados. Que você precisa achar outra saída. Embora eu nunca deixe pistas de que isso seja possível. É o cruel em seu estado mais puro, mesmo que se ame em triplo.

     Nunca será tão divertido quanto parece.

     Os braços dos pivetes ainda novos, consumindo pedaços de céu que querem ser consumidos, os cacos de vidro no chão, sobre as listras brancas de uma faixa desbotada que deveria nos levar além, os ouvidos que ecoam buzinas e antigas canções dedilhadas, minha preocupação de deixar os celulares no silencioso. A história de querer uma vida de mundo novo num mundo velho. O amor registrado e o isolamento interno no mesmo minuto em que a rua está repleta de gente. É só isso o que me espera. Foi esse o destino que eu abracei. E escrever ainda é um milagre que fere, mas vale a pena. Apesar de tudo. Vale a pena que um dia foi usada para chorar no papel.


Mariane Cardoso

Um comentário:

  1. "O amor registrado e o isolamento interno no mesmo minuto em que a rua está repleta de gente. É só isso o que me espera. Foi esse o destino que eu abracei."

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.