Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



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quarta-feira, 25 de abril de 2012

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     Eram três da manhã quando Gustavo abriu todas as janelas do apartamento e começou a cantar marchinhas de carnaval em voz alta.

     Na verdade, já faz uma semana que ele abre essas janelas na mesma hora, mas só ontem ele cantou. Lembro de quando eu vim morar aqui, eu tinha muito medo dele, acordava assustada toda noite. Os vizinhos diziam que ele era louco. Hoje, não consigo acreditar em nada que falam. E nem nele. E nem em mim. Eu acho que o Gustavo mudou a minha vida.

     Aconteceu que, umas semanas depois de eu ter vindo morar aqui, ele sentou no mesmo banco que eu lá perto do parquinho. Eu escrevia um texto chamado A alma por fora de nós e ele pediu pra ler. Eu mostrei. Gustavo demorou um bom tempo medindo as letras e depois começou a chorar, me entregou o texto e disse que não tinha entendido. Nesse tempo, eu ainda sentia receio de ficar perto dele, mas mesmo assim reli a parte do texto que estava pronta e expliquei superficialmente que era um trabalho da faculdade, que eu estava analisando o espaço, os prédios, as ruas, o bairro todo... Ele olhou pro chão e disse de novo que não tinha entendido. Era muito difícil conversar com ele. Era sempre muito difícil. Mas acho que aquele silêncio pós-desentendimento foi  o princípio de nossa amizade.

     Com o tempo, passei a encontrá-lo mais. Tinha dias em que ele ficava do lado da portaria, eu olhava da janela e descia quando ele estava lá. Nunca parei pra pensar no porquê. Certas coisas nele me atraíam de uma forma pessoal demais para ser raciocinada. Das almas de dentro. E ele raramente não tinha algo novo para me oferecer. Uma vez, ele me deu um botão de rosa esmigalhado. Uma sombrinha com estampa de macarrão, uma folha de papel marcada com cera de vela, uma página de revista com fotos de Marilyn Monroe, uma passagem de avião velha e tanta coisa que ele jamais me contará onde descobriu: guardo tudo o que um dia ganhei dele.

     Já perguntei se ele tinha viajado de avião, mas ele me disse que não, que nem sempre era possível porque os aviões também amavam. Eu fingi que tinha concordado e esperei que ele falasse mais, mas ele não falou.

     Às vezes eu acho que a loucura é mais minha do que dele, porque depois desse dia eu passei a acordar de madrugada involuntariamente só pra ver o que Gustavo estaria fazendo no apartamento da frente. Havia sempre um sentimento a se esperar. Ele frequentemente me dava angústia. Mas era como um vício, como um filme triste que a gente repete porque gosta de sentir aquela dor. E a gente necessita sentir aquela dor. O que mais me doía eram as vezes em que ele inclinava o corpo no parapeito da janela, quase pendurado, olhando fixo pra baixo. A cada segundo eu sentia que ele ia se jogar, que ele só estava calculando o ângulo certo para bater com a cabeça depois do salto. E todas as vezes eu me enganei. Tenho pra mim que ele sabia que eu estava perto. Ele sabia de tudo.

     Uns dois meses e meio depois de ter me instalado aqui, eu quis dizer pra ele e disse:

     Queria que eu fosse desentendida pelas outras pessoas tanto quanto sou por você. Sabe, eu tenho o domínio de tudo que quero falar, mas há sempre uma barreira, um bloqueio. Há sempre muita pressa nos ouvintes ou sono nos lábios, ou estamos constantemente passando vista grossa sobre aquilo que não funciona sem os detalhes. As pessoas terminam de me entender enquanto ainda estou incompleta e errada. 

     Ele me encarou e respondeu apenas que tinha entendido meu texto. "Mas não é texto, Gustavo. Tô falando isso pra você agora". E ele disse que não, que tinha entendido A alma por fora de nós. "Ah, aquele trabalho velho? Você ainda lembra daquilo? Só veio entender agora?". Não é velho, ele disse. E falou também que era atemporal. 

     A-t-e-m-p-o-r-a-l.

     Como os segredos que Gustavo faz questão de guardar e as sábias palavras que poucos irão inteligentemente rejeitar assim como ele faz. Muitas vezes eu e ele ficávamos apenas calados examinando o nada. Eu estava aqui e sabia que ele estava longe, onde os vizinhos não podem chegar. E eu não chegava, mas sabia, inclusive, que era lá que os aviões amavam e que o tempo era jogado fora. As certezas eram jogadas fora. Batia o sol do meio-dia e nós continuávamos sentados no banco. Eu dizia pra ele que havia sombra de menos pra nós dois.

     Mas eu não estava falando sobre o sol suspenso. E sei que ele não me entendia, mas que eu não precisaria explicar mais nada para que me entendesse depois.


Mariane Cardoso

6 comentários:

  1. Eu não sei como explicar o que senti quando devorei esse texto, Mari. Ele não é de fácil digestão, ou melhor, compreensão. Só sei que é uma das coisas mais belas que já li.

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  2. Pra onde os aviões vão, é lá onde eles se amam. No triângulo das bermudas.

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  3. Ai, vocês dois *-* kk Isla, você sabe que qualquer comentário seu é muito importante pra mim, não é? Fiquei radiante quando li o que você falou aqui. E Gabrieeel KKKKKKKKK não conte o que a gente não deveria saber.

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  4. Hey Mari, encontrei o seu blog e que maravilhoso! Fiquei encantada por suas palavras e sensibilidade, tudo aqui é muito poético. Os Famosos e os Duendes da Morte?! Temos uma paixão comum pela obra de Caneppele. Bom, agora sou sua seguidora. Parabéns, beijo.

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  5. Costumo ler textos e pensar que eles são lindos e espetaculares, e eles me abrem a cabeça. Mas esse texto, eu não sei, me desconcertou.

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  6. Sempre salvo seu blog e não lembro onde salvei... Dai demoro seculos para achar, mas, é tão bom quando acho. Lindo Mariane!

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.