Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

quarta-feira, 7 de março de 2012

Improdutividade

     Alguns dias são feitos de cinzas. Passarelas estreitas e aviões que a gente não conta como se fossem estrelas. Roubando o lugar do nosso salto, o nosso cansaço. Alguns dias passam sem que a gente tenha uma máquina fotográfica em mãos, sem que a gente saiba usar uma caneta, sem que a gente feche os olhos e aceite se perder. Alguns dias são feitos simplesmente de impossibilidades.

     E anda sendo difícil o silêncio pra mim. Porque de todos os lugares se ouve o barulho dos pés arrastados, das bocas rindo e rindo sem se entenderem, das conversas fiadas que ocupam o dia como forma de mascarar nossos medos. Há sempre alguém disposto a adiantar seu relógio, fazer a hora passar sem marcação, fazer os olhos passarem sem sonhar. Ficar sozinho é um tipo de arte deserta e perigosa. Como as praias inexploradas ou as matas virgens. Pouca gente entende o bem ou o mal necessários de quando se fica em solidão. E pouca gente pisa fundo em um chão que exige cautela, pois todos desaprenderam a andar macio. A maioria simplesmente desaprendeu a andar.

     As minhas portas foram tombadas a pontapés. Meu rádio eternamente ligado na estação do chiado. É difícil estar puramente desconectado de todos. E de todas as cobranças, expectativas, esperanças. Das pessoas invasivas e que nunca detestaram tanto as nossas chaves quanto agora. São os gritos que a humanidade nos obrigou a escutar. O pior castigo, repetido dia-a-dia na nossa escala de cinza. Pois a nossa calma as assusta. E elas nos assustam por nunca sentirem o momento de nos deixar ir embora, de nos deixar ser o quanto antes únicos. O quanto antes sós. E ainda tem gente que diz que a solidão é o seu maior medo.

     Mas somos completamente produtivos enquanto as portas estão fechadas. Aquela falta de fios cortados é o que nos apaga. Aquele medo de desligar a luz, de passar o fim da tarde quieto, de dormir sem ter um  encontro que salve o dia. Aquela espera do telefonema, da vontade de aprender, do despertador tocar. É o que nos desbota. Tudo o que nos acorrenta em casos e coisas. Tudo por medo de uma solidão que resolveria os nossos problemas, que seria o portal para matar a angústia.

     E continuamos inúteis enquanto as pessoas entram nas nossas casas, trocam as pilhas dos rádios, rodopiam e atiram nas paredes suas verdades impenetráveis. E todas elas, as pessoas, não conseguem ser sozinhas e em paz. Continuam presas no tempo dos relógios adiantados. Por isso, eu tenho medo de ser sociável a semana inteira. Porque o castigo nos obriga a absorver seus gritos sem descanso. E eu escolho a solidão. O meu protesto é o silêncio.

Mariane Cardoso

6 comentários:

  1. Sabe,eu costumo dizer que um texto mexe de verdade comigo, quando sinto vontade de tê-lo escrito. Tenha certeza, ao ler essa obra prima, tive uma vontade incomensurável de aproveitar de um dos momentos da minha solidão para conversar com as palavras e colocar essa magia no papel. Admiro muito o que escreves, parabéns como sempre.

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  2. Olá, você escreve muito bem, De verdade. Belos textos.
    Eu gostaria de saber o nome e quem canta essa musica que toca quando a gente abre seu blog.
    =)
    Parabéns pelo blog. Lindo.

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  3. Querida menina das palavras, passo todos os dias no seu blog e fico tão contente quando tem uma nova atualização. Os seus textos são simplesmente PERFEITOS e muito tocante, me identifico com tudo que escreve. Parabéns!! Se puder deixa o nome das suas músicas aqui, gosto tanto delas... ^^ Beijão, fica com Deus :*

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  4. Mais um belo texto para sua vasta coleção, que só tende a crescer tanto em quantidade quanto em qualidade (se é possível que possa ficar melhor do que já é).*-*

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  5. Seria tão mais fácil se todo mundo compreendesse a virtude do silêncio, da observação, do estático, da respiração... de tudo que se movimenta se arrastando pelos segundos ao invés de devorar o tempo pra não perde-lo. Obrigada por colocar em palavras esse sentimento! admiro seu blog, abraços

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.