Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

terça-feira, 13 de março de 2012

Aqueles que amam sofrem de contar as piores mentiras.

     Na artéria principal da cidade, o barulho parece ser bem-vindo. As buzinas congestionam até que o som vá parar no Centro, onde não se vê mais nenhum pássaro. Todos os vivos foram espantados pela pressa das pessoas, foram pisoteados pela alegria dos moleques. É um lugar assustador: tudo pode ser comerciável. Dos pássaros, restam os de barro, que são vendidos no artesanato do Mercado. É que aqui há um espaço vago-sempre-vago, não importa quantos pedestres estejam em cima da calçada. Um horizonte longe-sempre-longe, não importa quantos dias você ande em linha reta. Uma cidade dentro da cidade com a qual ninguém consegue entrar em contato. Nem quando a chuva abençoa todas as almas de uma só vez.

     Também chove fora da avenida, longe do barulho, ao redor do prédio onde eles estão. Este é o lado do muro onde a gente pode descansar a qualquer hora. É o outro mundo, a vida que a gente escolheu predestinar. Ele fechava a janela e a água gotejava no vidro. Era um segundo antes de anoitecer. Um segundo antes de tudo. De amar, de ir embora, de intimidar as estrelas. Um pouco antes do fim do mundo. Fazia silêncio na rua porque tinha que ser feito. Depois, ele a beijou. E todos os beijos demorados servem para decantar os poemas mortos que se negaram a desaparecer, que continuaram em nossas bocas como fantasmas.

     Mas até o tempo é um tipo de assombração. Existe uma melancolia que pode ser sentida todos os dias em que a chuva demora passar. Talvez tenha sido por isso que ninguém mais queria fechar os olhos. Ele apertava a coxa grossa em sua mão e não controlava a própria força. Ela sequer percebia, não existia mais dor. E, ainda assim, a cama meio que chorava. Nesses momentos cruciais, muita verdade é invertida. Lá fora, a chuva mantinha sua queda. Mas o outro lado da cidade parecia uma passado distante, ou um continente à parte, submergido e esquecido durante anos por se tratar de uma civilização inútil. O mundo real parece lenda quando o amor é provado com uma exatidão quase matemática.

      "Ainda sinto como se eu fosse a mesma pessoa", ela disse, respirando no peito dele. E esse talvez seja o pior tipo de mentira. Quando o mentiroso realmente acredita no que diz.

     O céu ainda fede de fumaça e o asfalto ainda queima de sapatos e pneus. Alguém poderia mentir ao dizer que conseguimos preservar qualquer coisa que valha a pena. Mas essa não seria uma mentira tão grave. Diante das lembranças clandestinas de uma mente pós-amor, qualquer palavra é alucinação. Ser a mesma pessoa é quase uma piada. Depois que o amor é provado desse jeito, é como se agora sim fosse possível entrar em contato. Como se não fosse permitido continuar no mesmo estágio. Como se a pessoa, o espaço e o horizonte fossem todos metamorfoseados. E o vidro de uma janela fechada pode ser capaz de separar dois mundos, quando do outro lado estão dois amantes.

Mariane Cardoso

5 comentários:

  1. Você toma um, dois goles de coragem, levita entre as palavras e eu sinto meu peito sendo arranhado a cada vírgula. Você me toca em cada texto de uma forma diferente, me faz querer não ter medo de existir enquanto continuo a percorrer frase por frase.

    ResponderExcluir
  2. Você é inacreditável!

    ResponderExcluir
  3. eu me sinto,assim,nas tuas palavras...

    ResponderExcluir
  4. O mundo não é mais mundo, a não ser o seu próprio, quando dois coração são unidos por amor... e a cada momento diferente, um sentimento diferente M.S.

    ResponderExcluir

Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

Quem sou eu

Minha foto
18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.