Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sábado, 24 de março de 2012

Alguns quilômetros

Não. Eu não tenho uma boa memória. Quem irá chamar de bom tudo aquilo que sufoca a possibilidade de um dia limpo? Às vezes, o meu suspiro se resume à posição de uma sobrancelha curvada no seu rosto, a todos os traços que eu lembro assim que acordo. Aqui é muito difícil sentir um clima ameno. Por isso, acordar é só saborear a conta de um amargo ainda novo. Andar pelo meio-fio, um pé atrás do outro, com o sol nos olhos. E um céu cruelmente metálico acima de mim, refletindo o que eu não fui capaz de tentar esquecer.

- Estão arrancando os trilhos de Aracaju.
- Em que parte?
- Em todas as partes. A cada dia que passa, mesmo que ninguém toque neles, eles estão sendo arrancados, eu sei.

Porque arrancar não é o que se consegue fazer diretamente. Arrancar também é deixar intacto, mas fazer buracos por baixo da terra, descaracterizar ao redor, deixar o mato crescer por dentro. É nunca mais usar aquilo que está inteiro. E é por isso que esquecer nunca adianta. Talvez um, dois, três telefonemas nos deixem com sono suficiente para sorrir.

- Li uma matéria ontem falando que usar demais o celular pode provocar tumores cerebrais.
- Então vamos ter tumores juntos.

Mas a nossa doença verdadeira é o não-estar. As coisas ficarão vivas, mesmo que você cerque tudo de ervas daninhas, traças e ferrugens. Um tumor maior que se chama saudade. Talvez um traço facial, dois traços ou quinhentos. Não estaremos salvos da má memória. Melhor beber o amargo do que arrancar todo o doce que ainda vive na alma. Mesmo que ele nunca seja dissolvido da nossa garganta, mesmo que permaneça por todo esse tempo no mesmo lugar.

Alguns quilômetros de céu metálico da sua cidade até a minha. De um céu intacto. E todos os segundos de apertar o coração valem por nenhuma ferrugem acima das nossas cabeças.

Mariane Cardoso

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.