Lá fora os passos são esquisitos, o cheiro camuflado de gasolina incomoda e não se pode ver o céu como antigamente. Lá fora as árvores são cortadas antes de morrer e existem cacos de vidros na calçada dos bares ao amanhecer. A mulher do andar de cima acorda antes das seis todo santo dia, incluindo domingos e feriados, e eu ouço o barulho dos seus saltos no piso de madeira. Eu tenho paralisia do sono, por isso fico entre o sonho e a realidade a cada despertar, sem conseguir mover meu corpo. No último segundo de sonho, alguém bate na porta, mas no segundo seguinte é realidade e não tem ninguém batendo, só a mulher do andar de cima passando de um lado pro outro. Lá fora nunca será convidativo.
Posso olhar o teto branco ou meus dedos dos pés imóveis enquanto faço força para me mexer. Todo santo dia, como se eu não aprendesse. Fazer força é tão pequeno. Então durmo de novo por três segundos e estou livre para comandar minhas próprias pernas. Não abro a janela. Portão de condomínio, esquina asfaltada ou clube particular não são endereço de felicidade. Endereço de felicidade é a sarjeta que só os heróis encontraram, ou algum dia haverão de encontrar. Os meus verdadeiros heróis estão todos lá, pois nunca conheci sequer um deles. É a prova de que preciso para acreditar.
Quando alguém encontra um verdadeiro herói, tem pena dele. Isso quando encontra. É uma coincidência quase improvável. Exige muito sacrifício por parte dele sair do seu círculo de deslumbramento. Não tem dinheiro de sobra, não come receitas sagradas e não consegue chegar na lua. Talvez seja considerado com menos respeito que os outros, é sumido e sombrio, misterioso. Alguns criam tiques nervosos, outros têm esquizofrenia passageira. Alguns provam a paralisia do sono e outros simplesmente têm insônia em excesso. Obscuros e escorregadios. Enquanto ninguém olha no seu esconderijo secreto.
Debaixo da minha cama, há um abajur. Quando se liga o abajur, há um céu de estrelas completamente visíveis pintadas a mão na madeira da minha cama. Dentro de cada estrela pintada, há uma pista para salvar a sua vida do mundo caos. Mas, nas quinas, há teias de aranhas e a poeira que esquecemos de tirar, pois já era tarde demais.
Mesmo assim, há o céu de estrelas heroicas a salvo. E a força do meu pulso - digo, não a força, pois força é tão pequeno, mas sim aquela alma das coisas que vive sem se importar se estamos a um segundo antes ou a um segundo depois da paralisia do sono de todos nós - foi essa coisa que me tornou um herói. Na minha sarjeta de todos os dias. Na paz de estar sozinho e protegido da invasão de todas as buzinas anti-soníferas lá de fora. Aos poucos e cada vez mais imortal.
Os heróis são felizes, mesmo quando não acreditam na felicidade. E meu endereço se confunde com a rosa dos ventos gêmea das minhas estrelas. Meu endereço não é essa rua, esse prédio ou esse apartamento. Meu endereço é aquele que ninguém pode conhecer sem confundir com a sarjeta. Mas não uma qualquer. Uma sarjeta onde os homens - é segredo - podem ser chamados de heróis.
Os heróis são felizes, mesmo quando não acreditam na felicidade. E meu endereço se confunde com a rosa dos ventos gêmea das minhas estrelas. Meu endereço não é essa rua, esse prédio ou esse apartamento. Meu endereço é aquele que ninguém pode conhecer sem confundir com a sarjeta. Mas não uma qualquer. Uma sarjeta onde os homens - é segredo - podem ser chamados de heróis.
Mariane Cardoso
Espero que você escreva sempre. Em blogs, livros, cadernos reaproveitados. Em qualquer lugar. O mundo me parece mais justo quando pessoas que tem esse dom escrevem sempre. <3
ResponderExcluirMari como sempre escrevendo lindamente, sobre heróis esse mesmos que vivem na sarjeta e por isso são designados heróis, que belíssimo texto, as palavras se encaixam tão bem, que tudo aqui parece uma verdade não contada.
ResponderExcluirqueria tanto a playlist :(
ResponderExcluir