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Parte II
A verdade é que nunca mais vi a mulher de vermelho depois de abril daquele ano. Não em corpo, não fisicamente, pois a alma permanece pelo mistério das vidas mal resolvidas. Levei dois meses invadido pela curiosidade, até encontrar com ela, para depois levar dois anos imerso na agonia de saber que o desconhecido contém muito além do que conheço sobre mim mesmo. O que me restou durante esses dois anos a mais de insônia foram apenas as lembranças do espetáculo no teatro, com meu rosto bem retratado nas telas de cegos sensitivos, e da rua com a cega das íris brancas e seus ataques de loucura repentinos e sem explicação.
Meu caro, dois anos é bastante tempo para um ser humano como eu beirar à própria loucura que presenciara. Então quero que me responda uma coisa. Você acredita em acasos? Pois eu não. Talvez por isso seja bem mais ardoroso recostar o corpo sobre a cama e tentar manter a mente livre das malditas recordações diárias, como num exercício de libertação para o adorável vazio do sono. Talvez por isso dormir fique para segundo plano. Quando eu penso no cheiro de inferno daquele cabelo queimado misturado com o vestido vermelho e com os olhos de gozo e com a arte e com a boca na minha, aí sim, eu realmente entendo o que ela queria dizer com "tinta guache e sangue quente".
Soube que ela morreu exatamente ontem. E ontem fez dois anos depois do episódio da calçada esburacada. Atropelada por um cara bêbado. Nada a ver com a sua deficiência visual. Dizem que ela escolheu a hora e o lugar, que sabia quando o automóvel ia avançar ou parar, e que decidiu a melhor hora para morrer. Mas ninguém se importa. Ninguém nem sabia o seu nome. Fecharam o teatro por consideração.
Esse é o mal das pessoas realmente brilhantes, já percebeu? Morrerão todas na melhor hora, mas isso custa uma genialidade às escondidas. O que também pode ser encarado como desvio psicológico. Ou como quiser chamar.
Pois bem, ontem eu consegui dormir, depois de tornar-me um lúcido inconsciente. Somos frágeis. Estúpidos e mais: obscuros. Vivemos décadas inteiras recolhendo as migalhas de dias monótonos enquanto os milagres nos circundam e nunca, nunca são por acaso. E são por esses choques de verdades explícitas que eu acho justo viver. Por uma descoberta da incapacidade e da invalidez, da pequena porção desconhecida que eu tenho em mãos. Da pequena porção desconhecida que eu sou nas mãos do mundo. Porque, por mais esquisito que pareça conseguir pegar no sono depois de entender esse desastre, o escuro é bem mais perigoso que o desastre às claras. O que quer que esteja no escuro. Acho justo viver por um rastro que ainda falta ser completo, ou para me defender de uma flecha constantemente apontada aos nossos corações rogando por um momento de lucidez. Mas lucidez de verdade, daquelas que nos fazem queimar uma mexa de cabelo para abrir os olhos dos outros à liberdade. E, se quiser saber, acho justo viver por uma mulher de vermelho de quem nem sei o nome.
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Foi um dos cegos que me disse do acidente, me parando na rua hoje de manhã quando eu passava pela faixa de pedestres. Eu não era mais repleto de olheiras e vazios. Entendi os olhos de gozo depois que eles morreram. Como se fosse necessário um impacto, uma força de impulso bem maior para arejar os sentidos. Quando perguntei sobre o meu rosto nos quadros, assim ele me disse:
— Sentimos as ondas de medo chegando da platéia. Geralmente rostos diferentes são desenhados, mas naquela noite o seu rosto tomava o espaço de todos os outros. Seu sangue fervia de medo nos nossos pincéis de tinta guache.
— Naquela noite, eu ainda não tinha medo.
— Todos temos. Você tinha, apenas não sabia. Agora você sabe.
Mariane Cardoso
Incrível, Mariane. Realmente incrível esse texto!
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