Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Uma História Que Nunca Contei

     I. Às dezesseis horas eu tentava controlar meu coração, disfarçar a ansiedade e o medo que rondavam o dia inteiro, entender o porquê de ninguém mais ter cara de choro igual à minha. Miúda e de blusinha florida, com a sandalinha número 25, eu era mais medrosa na casa cheia de corredores. A rede balançava no quintal com meu pai deitado, bebendo um copo com cheiro forte, o som ligado em Raul Seixas que contava as próprias aventuras. Minha mainha dentro de casa, no sofá da sala, assistia TV, zapeava os canais, fechava a porta pra que o som não atrapalhasse. Não digo tudo normal, ninguém tinha ido trabalhar, ninguém encarava a data com o susto que deveria. Eu ficava quietinha sem querer ferir aquilo denominado previsão.

     II. Era o último dia de 1999. Reunião de tios, irmãos e primos na casa da Praça da Bandeira às vinte horas, como uma planejada e arrasadora despedida global, a família toda dizia ir se juntar pro ano novo, 2000 chegando, mas isso era sinal de que tudo ia pros ares. Em 2000 o mundo ia acabar: tentaram esconder de mim, mas não conseguiram. Eu tinha acordado paralisada e cuidadosa, pois sabia que aquele era o último dia do mundo, que não ia restar mais nada. Guardei meus livros de fotografias, pelúcias e papéis de balas, minha boneca preferida no fundo da gaveta, as bolas de gude que eu colecionava sem ninguém saber, porque eu também não tinha aprendido a jogar direito, pus no pote e debaixo da cama. Passei o dia todo perambulando pela casa, sem descobrir a que horas o mundo ia ter fim. Meus pais não comentavam nada, não se preocupavam com nada, eu achei bonito e inexplicável. Queria poder salvá-los ou que sumíssemos sem que eles sofressem o tanto da minha apreensão. A criança que eu era e já tinha o desespero todo na garganta. 

     III. Parei no portão de casa, o que me separava da rua, mas que parecia fraco diante do ano 2000. Minhas mãozinhas se agarravam às grades e eu apoiava a cabeça pesada, olhava lá longe, até a vista não alcançar, pouca gente passando pela calçada do outro lado, a encruzilhada ainda mais silenciosa que de costume. Eu, dentro da minha ingenuidade e exagero que é encontrar-se na infância, queria roubar a minha rua para dentro de mim. A minha casa que pouca gente conseguia sair e entrar sem se perder porque era cheia de voltas, as minhas filhinhas de pano, os meus pais tão serenos e deslocados enquanto eu contia o desespero, queria roubar todos para dentro de mim até deixá-los seguros. Tanta coisa para tentar colocar debaixo da blusa, a chuva do fim do mundo não podia, não podia e não podia molhar. A história que vinha se derramar certeira e amedrontava meus curtos cinco anos de idade.

     IV. O relógio foi apontando pro cinco, pro seis, pro seis e metade do caminho. Mainha saiu pro quintal, pra sala de novo, foi ao meu quarto e não me viu, depois na frente de casa, eu ali agarrada ao portão, “já são seis e meia, vá tomar seu banho, vá, pra gente não chegar atrasada”. Eu obedeci de braços doloridos, mas pra quê que eu tinha que tomar banho? O mundo ia se acabar e mainha mandando eu tomar banho. Lavei as perninhas e a barriga, só, eu não queria demorar. Já pensou se o mundo acaba enquanto estou dentro do banheiro? Já pensou se morro nessa solidão e nesse lugar cercado de parede e vapor? Corri, fiquei pronta logo. E fomos para a casa da tia lá no alto da cidade, onde dava pra ver as luzes que noite nenhuma tinha coragem de apagar por nenhum ano 2000.

     V. E, então, até hoje ninguém me explica como estavam os parentes todos lá e eu dormi antes da meia-noite no sofá com estampa de natureza na casa da Praça da Bandeira. E acordei no outro dia, em minha casa, com minha rua e minhas bolas de gude inteiras. Minhas bonecas e meus braços que eu não tinha passado sabão na noite anterior, todos inteiros. Foi o começo de ano mais feliz, aquele. Coloquei cada coisinha que estava escondida em seu determinado lugar, tomei banho sem medo de ser surpreendida pela chuva. Fosse o sofá menos confortável, e eu tivesse ficado acordada até zero hora, o mundo teria acabado. Fosse o sapato tamanho 24 apertando meu dedo, e eu tivesse ficado acordada até zero hora, a chuva teria molhado por dentro de mim. Fosse a alma de criança mais esperta e vigilante, e eu tivesse ficado acordada até zero hora, esperando de olhos abertos, nunca poderia entender que sou a própria eternidade, que cada um é a própria eternidade isolada e protegida, segurando os papéis de bala e símbolos de amor, muito superior a quaisquer anos 2000.

Mariane Cardoso

4 comentários:

  1. Mariii, porque saiu do tumblr? Sinto tanto tua falta ): tem algum e-mail de contato? Queria tanto conversar contigo minha doçura

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  2. Coloquei uma askbox lá no meu tumblr, sempre que tiver um tempo passo lá e respondo os recados s2

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  3. Que texto mais encantador, flor. Juro que chorei e sorri com cada palavra. Até me senti pequenininha, até me lembrei de quando me espremia na minha cama com medos infantis. Parabéns por tanto talento *-*

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  4. Os braços se arrepiaram.
    Tu és a menina de sempre. A mesma, aquela. A mirrada e de blusa sempre pequena pra caber tudo. Tu és a mesma de sempre. A mesma, a eterna.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.