Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Faremos de conta que a culpa não é nossa

     "A mente não cabe na sala". É o que eu lembro quando penso em você, Pietra. Isso quando a lua se esconde e eu tenho certeza absoluta de que você é capaz de transpôr as paredes, de que não somos tolas, nem infantis, e de que essa viagem exacerbada é mais uma arma utilizável no mundo real. Por muito tempo eu considerei o seu egoísmo e a sua rispidez detestáveis, porque eu sempre fui mais sentimental do que o necessário. Sempre fiquei do lado mais fraco enquanto você mudava de lado quantas vezes fosse preciso, só para não ter um motivo para chorar. E eu achava isso ridículo, não amenizava no achismo. Muita coragem pra cabeça não pesar quando você estivesse sozinha. Mas agora... Agora eu te entendo, Pietra.

     A sua pose de mulher forte não passava de um esconderijo. E esconderijos, muitas vezes, também são calabouços. Com grades. Fica improvável demais voltar, depois de tudo. Não tente negar. Você já deve, algum dia, ter sido frágil e desarmada como eu. Qualquer uma já pensou que a sala era suficiente para que a mente surpreendesse tudo ao redor. É preciso ter asas para perdê-las, não é? Então, não diga que sempre foi assim. E também não diga que é indolor se tornar uma fortaleza, pelo menos no processo intermediário. As pedras esfarelam com o tempo, com o impacto, com a insistência. E você pensa que é pedra, mas é pó. O pó que restou de você mesma, e que ninguém mais pode ferir, diminuir, arrancar pedaço. O mesmo pó que peca por ser imperceptível. Por ser traiçoeiro. Você é traiçoeira, Pietra. Mas é mulher de verdade. Eu doía demais em você por não aceitar o seu jeito grosseiro de liquidar os espinhos. Sei que te neguei muitas vezes. Sei que critiquei e quis que você não existisse porque, para combater, você se transformava no próprio inimigo. Você seria qualquer coisa, mesmo que não estivesse em seus preceitos, só para não ficar para trás. E talvez eu tivesse inveja de você enquanto comia poeira, mas segurava minha grande ética, grande moral, meu grande coração mole e minha grande generosidade. 15% a mais de generosidade a cada ano, você lembra? Grandes porcentagens, eu as adoro. Mas queria que você entendesse as feridas que causava, sem saber, porém, que já estava muitíssimo ferida.

     O seu universo é de beleza. Essa importância da estética, de satisfazer os olhos, de se satisfazer. Como na vez em que você passou um dia inteiro decidindo o tom de vermelho da tatuagem que você faria dali a cinco anos. Como da vez em que você abriu as pernas para um estranho só pra saber até onde você seria capaz de ir. Como da vez em que virou a noite escrevendo o quanto era ruim escrever. Não é que você seja rebelde ou pirada. Você ficou apenas intocável. E eu uso "apenas", como se fosse normal ficar intocável ao longo do tempo. Talvez sim, principalmente para os sensíveis em demasia. Isso é o que me leva à preocupação. Porque eu tenho medo de me transformar puramente em você, Pietra. E tenho um pouco de gosto, também, pois sei que assim serei finalmente forte e inalcançável. Assim, me tornarei grande, estarei segura. Mas é um preço que eu não quero pagar. A verdade que eu descobri é que vamos nos acostumando enquanto cada mínimo lapso dói. Somos obrigadas a nos acostumar. Você foi, eu serei. E eu vou me tornar insensível depois de provar de cada ferida que eu faço questão de aumentar. Agora eu te entendo.

     Não adianta virar a noite, escrever, pintar o cabelo de azul, se jogar da janela de casa, correr de pés descalços, sair sem roupa na chuva, engasgar. Chega uma hora em que nada mais faz efeito. Foi assim que você virou a mulher que é hoje. Foi assim que você virou inalcançável.

Mariane Cardoso

4 comentários:

  1. Mais uma vez eu em lugar errado, mas tu faz falta no tumblr (lugar errado falando sobre outro lugar), estou bem la e te vejo na dash pronto ja penso nas suas palavras doces e gentis que tu usava para responder era algo muito bom e acho que só de você elas veem com aquele impacto, o bom é que escreve e eu posso te ler. /Pedro Conti(fico pensando se lembra). Desculpa por estar mais uma vez no lugar errado

    A proposito continua escrevendo muito bem viciante digamos assim o que escreve

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  2. Mariane, como tu és magnífica! Descreveu exatamente o que se passa entre eu e uma amiga minha, que por sinal, chama-se Pietra também. Fiquei encantada e me encontrei em tantas partes deste teu texto. Sempre crescendo, sempre arrancando sorrisos ou lágrimas de mim... Parabéns menina-sereia. *-*

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  3. "Não adianta virar a noite, escrever, pintar o cabelo de azul, se jogar da janela de casa, correr de pés descalços, sair sem roupa na chuva, engasgar. Chega uma hora em que nada mais faz efeito." Pura verdade Bb... =}

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  4. Nossa... Lindo. Estou sem palavras de novo. haha Por vezes postam teus textos lá no tumblr, mas eu tenho que vir aqui e ler. Sem contar as músicas sempre tão lindas... rs Bom resto de sábado e o domingo inteirinho. Boa noite.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.