Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A estrada podia ser você

     Pelo vidro do carro, o tempo é curto. "Milhas e milhas distante do meu amor". Não consigo acompanhar a paisagem. O asfalto pega fogo lá na frente, porque faz um sol escaldante. O céu pode ser minha praia, com direito a espuma, se eu quiser. Mas eu passo rápido e lembro que tenho raiva de ilusões de ótica. E eu queria que fosse noite para lembrar mais os seus olhos, pois estrada negra e pele de luz negra seriam completamente você, com as estrelas para mostrar que solidão não precisa ser a única habitante da viagem. O banco é duro e meus joelhos, doentes. O rádio toca aquela música que só a gente conhece:

Querida, capa passo corta o sertão
como pura águia faminta.
Teu portão fica a dois passos
Da minha leve perfeição.
Eu bebi meu próprio choro...

     Eu não só amo, mas também desesperadamente. Meu cabelo é exaltado e levado pelo vento que bate sem piedade, e eu me torno ventania colada à porta do carro. A estrada podia ser você, para eu me jogar. Para eu ser real de novo e mais pesada que o vento, ser largada no asfalto quente enquanto beijo sua boca minha. Para diminuir a velocidade - a da vida - que me empurra para longe, que nos empurra para longe desde que nascemos. Para ser águia ou ter força o bastante para encontrá-lo a dois segundos. A dois míseros pedaços de tempo que nem fariam falta, mas que nos salvariam da saudade.

     A bagagem vai vazia de gente e eu só tenho você. O calor ainda cresce, o sol sobe para o meio-dia. As árvores vão fugindo dessa promessa de tocar, cada uma mais medrosa que a outra, e eu nem conto suas folhas secas. Os faróis eu deixo desligados, e desligo a música. Eu queria encontrá-lo nesse espaço em braço que pode ligar duas cidades. Eu não só vento, mas também enlouquecidamente. Viajo nos braços do ar enquanto apenas sou eu sentada no banco desconfortável, morta de percepções incrédulas sobre você estar aqui e do outro lado ao mesmo tempo. Também bebo o próprio choro. Eu anoiteço ao meio-dia limpo por você.


Mariane Cardoso

Um comentário:

  1. Mas eu estava, querida, eu estava. Você sabe que sim, no fundo você sabe.

    ResponderExcluir

Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

Quem sou eu

Minha foto
18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.