Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Confissões de Um Espírito Revirado

     Eu comecei a deixar meu cabelo crescer por preguiça e hoje todo mundo me chama de pró-revolucionário. Eu só queria saber de que revolução eles tanto falam. Às vezes eu acho que as pessoas erram as minhas escolhas, mas depois apenas não sei, porque eu odeio porquês pequenos e eu seria muito novo para falar muito. Dizem que essa é a minha fase de rebeldia mesmo, inclusive me entendem. Eu não explico nada, não preciso explicar nada. Na verdade, eu só quero ficar na minha casa, quieto e silencioso. Quer dizer, não importa quantos anos levou para esse cabelo crescer até o ombro, o meu espírito nasceu revirado e corre no tempo de trás para frente. Eu estou condenado a nunca viver por inteiro, pois enquanto o corpo tem energia, o espírito não tem. E, quando o espírito finalmente tiver, o corpo será só desgaste. DESGASTE. Rebeldia? Essa é a minha temperança.

     Por isso eu inventei uma segunda maneira de ser satisfeito. Eu vivo a vida de tudo que vejo. O céu, por exemplo, tem um destino completamente intolerável, se repetindo todo dia como num filme em que o sonho está dentro do próprio sonho, incansavelmente amanhecendo e anoitecendo. O que o salva são as estrelas que morrem e os eclipses que chegam como milagres para marcar que a idade passou e que o sonho do céu já é outro. É engraçado pensar que duas escuridões desse tipo podem salvar a sanidade de uma vida tão grande como a celeste, mas é a pura verdade. Os livros que leio, os filmes que vejo, as histórias que me contam, os enigmas que vou desenrolando sozinho, essa é a vida que eu posso sugar para mim. A rua pela janela é outro exemplo. De vez em quando, é possível descobrir uma alma alheia revirada também, passeando pela calçada. Esse tipo sempre olha para o chão, tem medo de ser observado, porque, se os outros descobrissem, seria como... Açoitamento no meio da praça.

     Então eu não permito que me descubram. A menos que seja para marcar também que o sonho é outro. O grande problema é apenas a quantidade: sofro de acúmulos. Acúmulo de informação, acúmulo de imagem, acúmulo de sentimento e até acúmulo de vida. A cabeça anda doendo. Por dentro, é como se eu tivesse empilhado corações, uns jogados por cima dos outros, superpostos desorganizadamente, empurrando a pele do avesso para folgar um pouco, pressionando-se enquanto batem, batem rápido, batem forte, amontoam-se pulsando até a minha cabeça. Mil e um corações. E expulsam sangue porque há acúmulo de pressão. E se afogar em sangue, meu amigo, não é para qualquer um. Como se a arma, de tão eficiente, já atirasse VERMELHO.

     Eu sofro mesmo de rebeldia subjetiva? Eu sofro de mim, de mins.

     Camuflo o que é simples. Eu queria ser novo ou velho o suficiente para ser um só, com espaço de sobra   onde não só filosofia/teologia/poesia tivessem passe livre. Aquele velho papo de se encontrar e saber dizer, dar a palavra, colocar a mão no fogo. Aquela velha luz à meia-noite de uma semana antipática. Eu queria me sustentar sem nada. Ter coragem de não esperar futuro, sem objetivos, sem destino pela frente, sem estradas ou cidades ou pontes por onde ainda possivelmente irei passar. Desprovido dos mapas e das letras de canções da geração anterior. Sem ilusões, sem riscos, sem vítimas ou propósitos. Sem conhecer as histórias, sem gente para servir de inspiração, sem passado. SÓ EU. Sozinho. Para inventar vida de onde nunca saiu sequer um sopro de ar. Criar vida onde antes não havia nada, absolutamente zero. Funcionar sem acúmulos, só ir soltando. Soltando meus corações, no ato inverso, revirado, para criar a minha própria vida.

     SUBLIMAR.

Mariane Cardoso

2 comentários:

Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.