Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sábado, 31 de dezembro de 2011

A Acrobata Do Circo Solidão

     Meu lugar é querendo roubar as estrelas, minha tarefa é flutuar. Eu brilho nas pernas e nos braços, escalo o ar, sou a inacreditável mulher-anjo sem asas. Mas, quando os tambores emudecem e as luzes se apagam, sou apenas uma andante, tenho os pés no chão. Sou a acrobata do Circo Solidão.

     O essencial é parecer leve como num balé aéreo, não tirar o sorriso da cena. Uma personagem, como todos os outros são. Tenho disfarce e equilíbrio comprometidos, um frio na barriga que acompanha, os olhos escuros apagados pelo rosto feliz e muito instinto. O segredo é jogar antes de calcular. Debaixo da tenda, os espectadores apenas fogem - do cotidiano, do trabalho, do vício, do crime, do ressentimento, dos fatos. Debaixo da tenda existe uma proposta, alguns são artistas no ápice da palavra e todo o resto assiste para esquecer. Assim, eu não sou apenas a mulher-anjo, mas também a mulher que apaga, por alguns minutos, esses fatos. Consigo ser fatídica apenas para mim no tempo cronometrado do ar.

     Do nosso circo ninguém lembra o nome, pois é um circo esquecível, como todos os grãos de poeira que se perdem nos vendavais. Por isso, cada artista decide o nome dele. O meu foi Solidão. Mas isso eu não contei a ninguém, fiquei sozinha.

     No início eu tive medo. Para todos os efeitos, existia a rede que me salvaria do passo em falso. Mas eu nunca caí, nunca provei se doía ser salva. Talvez a sensação de inutilidade fosse maior que a dor, quando eu notasse os olhares do público apontando palavras mudas, dizendo por dentro que minha queda lembra  todas as outras quedas, as misérias do lado de fora. Ninguém pagaria para lembrar. Por um erro mínimo de braços e pernas que brilham, eu poderia arruinar os apagões de uma noite. Vivo com essa responsabilidade. Mas realidade é algo relativo, os outros artistas estarão contentes enquanto não perceberem que é carga demais para suas costas. Esse foi o motivo do nome. A solidão é um prêmio para aqueles que suportam guardar segredos.

     Hoje eu não tenho desconforto. Antes, cheguei a odiar o casulo. Antes do antes, eu não era sozinha. Já tive planos, amores, gostei de música popular, queria criar um pássaro, ter uma casa no campo com coleção de livros até o teto, filhos e cheiro de paz. Era o meu tempo egoísta, eu era uma criança que acreditava em princesas. Hoje eu posso ser a princesa do circo e não há muita diferença. Quem me olha jamais chegou a me tocar. Nenhum sentimento compartilhado. Tudo o que faço é doar minhas cores de tecido e meus jeitos de fazer o corpo brincar, só doar. Jamais jogaram uma flor no palco. Jamais perguntaram meu nome. Mas um menino pequeno, uma vez, chorou por mim, por medo de que eu nunca mais pudesse descer.

     Se eu pudesse somar as inúmeras escaladas que dei, sobrepondo umas às outras, tenho certeza que chegaria às estrelas. E nunca mais desceria.

     Mas desço quando os tambores param e perco o sentido. Meu voo, meu suspense, meu drible, meus segundos específicos, meu título de princesa, meu porte de bailarina que se confunde com o ar, tudo perde o sentido. E eu sou tudo nos minutos em que sou artista de fato, menos acrobata. Acrobata eu sou quando piso os pés no chão, acrobata eu sou quando sinto os músculos doerem e a roupa apertar, acrobata eu sou quando ouço os aplausos finais que me dão um choque de despedida. Saindo da solidão bonita para a solidão destroçante. Eu sumo nas cortinas e caminho como uma mera mortal. Minha solidão sem arte entorpece, mas eu espero o outro dia. E no outro dia pode haver uma flor, uma pergunta ou um segundo menino que chore por mim.

     A solidão é o meu circo.

Mariane Cardoso

4 comentários:

  1. Acho que esse menino te prefere lá em cima, anjo.

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  2. Ah Mariane! Sou um acrobata que finge ter os malabares para ter, na verdade, só as malas e os bares. Os bares da solidão e as malas levo comigo, pra conforto do meu coração já ferido.
    Obrigado pela Leitura guria.
    Obrigado.

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  3. "A solidão é o meu circo"; e eu me sinto a acrobata por alguns instantes. Se eu não viesse aqui te desejar um feliz ano novo não seria eu. Então feliz ano novo Mari *-* Muito amor e muita luz para ti, muitas inspirações e coragem para escrever, para enfeitar esses seus sentimentos tão... fortes, secretos, e você compartilhar com a tua escrita. Quando me sinto "perturbada" abro o seu blog e fico o sentindo, é tão bom. haha Enfim, felicidades menina, pro ano todo! Feliz todos os dias s2

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  4. Ah, preciso comentar que esse foi um dos textos mais lindos e belos que já havia lido. Encanto é pouco para o que meus olhos sentem após ler tanta belezura.

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.