Nenhum outro vai saber dos sons que se formam e
o porquê de você sorrir com a mesma palavra que
faz o outro chorar. A gente vive pra ser secreta,
transposição e transbordamento, além da risca de
giz no nosso próprio telhado que goteja e inunda o
quarto trancado. E tudo isso vai morrer em segredo.


Une cruel incompréhension...



'

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Só pra quem sabe viver

     Ligava o chuveiro no mais quente, parecendo que tinha pressa para ser consolada. E tinha mesmo. Haja água nesse mundo para tanto choro. Haja promessa mal feita, pois a partir de hoje não iria esperar nada em troca, a partir de hoje atravessaria a rua na faixa de pedestres, a partir de hoje lembraria de dormir ao toque de recolher. Mas já tocava tanto dentro de si, como se respirar fosse uma obrigação, não um alívio. Quem descobria tanta dor ficava assombrado. Era de praxe e não havia problema sério, só um nó nas cordas vocais, uma lembrança que clamava por afeto, uma mão querendo encontrar apoio pra essa vida que nunca se sustentou sozinha, um afago e uma tulipa qualquer que se atrevesse a nascer na janela. E Tulipa Ruiz tocava no fundo do cômodo, mas a erva daninha não deixava. Durante anos, sem milagre de beleza, sem distração de si mesma. Ela nunca mais colocou um relógio naquele pulso, mas não por causa do tempo: pois o sol bronzeou tudo em volta, menos o que estava protegido. Ela saiu querendo estar limpa e consolada, e se o bronze viesse, que fosse por completo dessa vez. Já não estava sem tempo de assumir o coração-cruz que lhe deram.

     A: - Hoje eu não ensaiei nossa peça teatral.
     B: - Pois é, e você sempre esquece a mesma fala.
     A: - Não sou eu, o script que está errado.

     E por que tinha que vir de dentro dela? Por que não podia ser o destino, a mãe natureza, a má sorte, a coincidência culpados de tudo? Não que fosse bom seguir no incêndio, mas viver no paraíso implicava em não ser a própria, em não ser real. Fruta que cai do pé é a mais doce, a mais fácil de ser engolida. Então alguém explica por que ela sempre caía e não conseguia passar pela goela? Como, isso de crescer na sombra pra morrer tranqüilo? Gente que se arrasta fugindo do frio, arranhando a pele meio que dizendo “vai, meu filho, vamos trabalhar, pega o incinerador e faz favor de apontar pro coração”.

     A: - Vou queimar esse script agora.

     (Mariane Cardoso)

4 comentários:

  1. Que saudades dessas palavras.. Obrigado douradinha.. Você sempre sabe o que falar!

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  2. Vou ficar mais um pouquinho para ver se acontece alguma coisa nessa tarde de domingo...


    saudades Mari s2

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  3. Mari, você é a minha ÍDOLA! Parabéns por mais um texto maravilhoso.

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  4. Lindo Mari! Você sempre nos surpreendendo com um pouco desse seu talento não é!!? rsrsrs :* Bjos menina! s2

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Alguma luz
vai escapando
e só eu
sinto.

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18. Menos artista, mais idosa. O prefácio, o retórico, o histórico, o profético, o pró, o fétido, o esplendor e tudo mais o que cabe no poético.